Para muitos, a produção de Emmanuel Nassar chega a ser
desconcertante: obras que se assemelham a pinturas, mas feitas a partir de
pedaços modulados de placas de metal usado para propaganda – riscados,
corroídos, e sem nenhum sinal aparente de intervenção manual do artista – que
Nassar combina e recombina (muitas vezes no computador, a partir de fotos
digitais), até chegar a um resultado que mais o agrada e ao cliente (um
colecionador ou um curador, não importa); pinturas que se assemelham a
fotografias modernas, de detalhes de objetos ou ornamentos populares;
fotografias que se assemelham a pinturas modernas de detalhes de objetos ou de
ornamentos populares; obras em tecido, que parecem bandeiras; bandeiras que
mais parecem obras em tecido.
A relação acima poderia se estender com mais exemplos dessa
maneira peculiar como Emmanuel povoa o circuito de arte atual, esgarçando até o
limite as bordas entre arte e arte antiarte, testando, nesse processo, a
cumplicidade dos outros componentes do circuito e a complacência do espectador
comum.
Essas características visíveis em grande parte da produção
recente do artista são resultado de um processo maturado de escolha entre
algumas características que foram aparecendo ao longo de sua carreira.
Se hoje em sua obra essa característica desconcertante é mais
pronunciada, é importante pontuar que ela nem sempre esteve sozinha, pois
Nassar nunca agiu apenas por esta via. Embora hoje ela tenda a ser predominante,
houve períodos em sua carreira em que essa atitude fria e crítica perante a sua
produção e ao circuito de arte convivia com outras atitudes do artista perante
o próprio trabalho. Em sua produção de algum tempo atrás era comum, por
exemplo, ao lado dessa atitude que hoje caracteriza sua produção, encontrar
trabalhos em que o artista tentava estabelecer certa dimensão lírica e,
portanto, “expressiva”, outros em que ele reivindicava a dimensão autoral dos
trabalhos que produzia, enfim, uma série de procedimentos que – como veremos –
tentava reagir contra a atitude que aos poucos ia se impondo, e que
transformaria sua obra mais como um comentário crítico sobre os esquemas que a
nutriam do que propriamente a afirmação de uma singularidade artística tradicional.
Este texto não pretende traçar todo o percurso de Nassar
explicitando quando e como essas características surgem e como vão se
sobrepondo. Meu foco é apenas estabelecer uma interpretação desse fenômeno
para, quem sabe, aumentar ainda mais o desconforto que muitos experimentam
quando se colocam frente ao trabalho do artista.
Como uma interpretação, os parágrafos que se seguem dizem
respeito a como eu percebo e cravo significados a determinados aspectos da
trajetória de Nassar, nem sempre convergindo para o que o próprio artista pode
pensar sobre determinados aspectos de sua produção e atitudes concretas que
tomou em relação ao circuito da arte. Neste sentido, assumo toda
responsabilidade sobre o que, neste texto, haverá tanto de documento quanto de
ficção.
*
Inicio partindo da seguinte premissa: hoje Emmanuel Nassar
está ligado a uma atitude comum nas artes visuais desde Marcel Duchamp.
Observando sua produção nesses últimos anos percebe-se que ele não mais se
identifica com a figura tradicional do artista que produz seu trabalho a partir
de uma conjugação entre o pensar e o fazer. Emmanuel, portanto, pode ser
caracterizado como um “artista-editor”[2],
aquele que seleciona e reordena as coisas e as imagens do mundo, devolvendo-as
com outras possibilidades de significação.
O estudioso alemão Boris Groys, no ensaio “El artista como
consumidor”[3]
aponta algumas questões que irão ajudar nesta interpretação da trajetória de
Nassar. Em primeiro lugar, o autor aponta que mais do que um produtor, o
artista é hoje “um consumidor de coisas anonimamente produzidas já em
circulação em nossa cultura”[4],
cabendo-lhe decidir, escolher e combinar esse universo de coisas a partir de um
olhar crítico sobre o mesmo, atitude típica de quem consome, de quem escolhe um
produto e não de quem o produz.
Essa inversão do papel do artista atual – antes um produtor
que colocava o seu produto ao escrutínio do público, hoje um consumidor que
escolhe e age sobre o já existente, exercendo, portanto, a crítica – teria
desdobramentos significativos que Groys desenvolverá por todo o interessante
ensaio. No entanto, creio que para os propósitos desta interpretação caberia
apenas guardar o seguinte dado: esse artista-editor, para escolher as imagens
ou coisas que vai tomar como suas, está assumindo não apenas uma postura em
relação àquilo de que se apropria, mas também em relação aos resultados que
desenvolverá a partir desse processo, e ao circuito que os receberá.
Como sabemos, Emmanuel Nassar não está isolado dentro dessa
vertente, no âmbito da arte contemporânea no Brasil. A integram artistas como
Nelson Leirner, Farnese de Andrade, Hudnilson Jr., Alfredo Nicolaiewsky e
diversos outros artistas que – por meio das mais diversas escolhas críticas que
desenvolveram ou desenvolvem das coisas do mundo – ampliam em muito as
possibilidades da arte do país, hoje em dia.
Tomando este quadro mais geral como base – ou seja, ser um
artista-editor é quase que uma “condição” nos dias de hoje, e que no Brasil
existe em atuação uma série de artistas com esse espírito crítico –, seria
interessante agora proceder a uma espécie de desnudamento dessa condição
crítica, ou do seu aparecimento dentro da trajetória de Emmanuel Nassar,
pontuando os mecanismos que ela colocou em prática durante seu processo paulatino
de amadurecimento enquanto editor do mundo, moldado pelas suas relações com o
circuito da arte.
*
Como mencionado, Nassar nem sempre agiu como um consumidor
crítico das imagens ao seu redor. Ou seja, nem sempre ele teve consciência
dessa condição e mesmo quando ela foi emergindo, muitas vezes Nassar se
utilizou de procedimentos para suprimir ou, pelo menos, diminuir aquela
condição. Em retrospecto, nota-se em sua trajetória momentos em que ele, de
fato, parecia acreditar na força expressiva de seu trabalho como expressão de
uma autoria pura, mesmo que, já naquela época, operasse dentro de um quadro
bastante peculiar de apropriação.
Nassar, desde o princípio, usou como base de sua produção
dois vetores ou dois universos imagéticos que embora se desenvolvam em paralelo,
e possuam alguns pontos em comum, persistem distanciados: a cultura visual da
Amazônia – sobretudo aquela do estado do Pará e, especificamente, de sua
capital, Belém – e a tradição construtiva da arte ocidental do século XX,
incluindo aqui algumas de suas excelentes desinências brasileiras.
A motivação inicial que levou Nassar a optar pela exploração
da primeira daquelas duas matrizes encontra-se na cena cultural de Belém nos
anos 1980 em que surge a necessidade de que os artistas eruditos locais plasmassem,
fizessem migrar pra suas respectivas produções a riqueza da cultura visual
criada pela população mais pobre de Belém.
Pertencente a um grupo de filhos da terra e da classe-média
local, sensível ao entorno social e ligado às artes, essa demanda impeliu a ele
e a alguns outros então jovens artistas da cidade a uma ação que, apesar de
existir faz tempo (desde os românticos dos séculos XVIII e XIX), pode ser
entendida também como uma espécie de “operação duchampiana” (desculpem o
anacronismo), uma “operação de consumo”, para usarmos a terminologia cunhada
por Boris Groys: o artista erudito percebe um manancial de estímulos à sua sensibilidade,
vinda da produção das camadas populares ao seu redor. Frente a essa fonte
supostamente pura da “verdadeira” visualidade autóctone, ele deverá tomá-la
como base para a constituição de uma obra que, embora concebida para circular
em um universo culto, possui como suprema justificativa o fato de ser inspirada
na “verdade” da população.
Esse tipo específico de apropriação dos estímulos visuais de
uma classe social pela outra, de uma cultura pela outra, possui inúmeros
exemplos, tanto no Brasil quanto no exterior e não apenas no âmbito das artes
visuais. No caso brasileiro, esse tipo
de apropriação – ou de expropriação, para alguns – em alguns períodos ganhou
foros de necessidade absoluta.
Em muitas obras do início de sua carreira, Nassar parecia dar
provas de acreditar nessa missão e grande parte dos resultados conseguidos no
âmbito de suas pinturas daquela época, ele demonstrava resultados positivos
quanto ao esforço de trazer para o universo da arte contemporânea brasileira,
certos índices notáveis de uma visualidade de cunho popular, típicos da sua
região natal.
Em várias das telas que produziu sob esse desígnio inicial,
nota-se a ausência mais precisa de qualquer índice autoral, capaz de sinalizar
para o fato de que quem teria produzido aquelas pinturas teria sido o próprio
Emmanuel Nassar. O processo de apropriação era tão perfeito que o anonimato das
matrizes apropriadas parecia ter sido transferido sem nenhuma interferência para
o resultado da apropriação.
É interessante notar, no entanto que, frente a esses
resultados, Nassar, talvez inseguro dessa virtual perda de autoridade sobre os
resultados de sua ação, consciente ou inconscientemente busca procedimentos
capazes de reverter esse quadro.
Mas como resolver o impasse? Usar expedientes para criar
estilemas de autoria supostamente inequívoca a partir, por exemplo, de uma gestualidade
sôfrega, bem ao gosto “expressionista”, estava fora de pauta, sob pena de
macular o caráter bidimensional, tão característico das matrizes apropriadas. A
solução encontrada por Nassar em alguns trabalhos foi, então, agregar ao campo
pictórico suas inicias: E. N., letras que, também planas, ao mesmo tempo em que
se adequavam ao caráter bidimensional geral das composições, chamavam para si,
resgatavam para o artista a propriedade do resultado da operação de
apropriação. Tranquilo agora podia ficar Nassar, tranquilo podia ficar o
circuito, pois, afinal, passava a ter certeza de que o objeto à sua frente
emulava conscientemente a matriz popular não sendo, portanto, e absolutamente,
a produção de um anônimo qualquer.
Após uma série de obras que seguia a mimetizar em telas o universo
visual que o cercava, Nassar, parece, não demorou a perceber que a maneira como
se apropriava daquilo que via, ao mesmo tempo em que tornava evidente a origem
primeira de suas fontes visuais (o extrato popular), trazia índices que aludiam
àquela outra tradição, ao outro manancial já enunciado: a vertente construtiva
internacional que, no Brasil, possuía resultados poderosos (Niemeyer, concretos
e neoconcretos, Volpi, Schendel e outros). A maioria de suas pinturas, de fato,
mesmo enfatizando a primeira matriz, ou justamente por isso, fazia transparecer
certas soluções de cunho construtivo, passíveis de serem ligadas a uma
categoria da produção artística brasileira e latino-americana que, a partir dos
anos 1970, ficou sendo conhecida como “geometria sensível”, cunhada pelo
crítico Roberto Pontual[5].
De fato, muito da produção de Nassar em seus primeiros anos de carreira,
sinalizava para certo “lirismo geométrico”, quer pelo uso propositadamente
ingênuo das cores, pelo traçado errôneo das linhas e outros procedimentos.
A percepção dessa possibilidade de conexão entre o popular e
o erudito, no entanto, logo começou a ser contaminada pela dimensão crítica, já
aludida aqui, que rebaixaria no artista a soberania daquela, digamos, inicial
presunção romântica.
Parece que foi justamente pelo fato de Emmanuel Nassar nunca
ter sido um romântico (ou, pelo menos, não o tempo todo), o que lhe permitiu ir
percebendo que mais do que a expressão de uma síntese entre o popular e o
erudito sua produção era uma espécie de comentário ou constatação sobre os
pontos em comum passíveis de serem traçados entre ambas. Essa compreensão
retirou do artista a crença de que era possível, em pleno anos 1980/1990,
evocar possibilidades de qualquer tipo de nativismo de derivação romântica que
não beirasse o kitsch ou, no limite, a má-fé.
E como Nassar teria percebido essa dimensão perigosa que sua
produção poderia estar trilhando sem que em um primeiro momento ele tivesse se
dado conta? Creio que o que deve ter contribuído para o acelerar dessa
percepção tenha sido a compreensão paulatina do esquema que ele usava para a
produção da maioria de suas telas: tendo a forma retangular da pintura na
cabeça – a mesma forma do visor de uma máquina fotográfica, diga-se de passagem
– Nassar, à procura das matrizes populares do seu entorno, recortava
mentalmente determinados detalhes de ornamento presentes nos mais variados
objetos populares que o cercavam, jogando-os no formato da tela. Ao exercer
essa apropriação – literal ou metafórica, dependendo de cada obra em particular
– o que ele fazia era transplantar aqueles estímulos visuais populares para a
grande tradição da pintura ocidental. E dentro desse universo, qual a tradição
a que aquela operação feita por ele de imediato se associava? A tradição da
pintura de teor construtivo, “sensível” ou “lírico”, pouco importa, pois, de
uma maneira ou de outra, qualquer solução sempre estaria conectada àquela
tradição.
É interessante que, a partir dessa percepção (que, com
certeza, não foi imediata, mas processada a partir de várias pinturas,
entremeadas de exercícios alienados do próprio esquema que se desenvolvia), Nassar
vai enfatizar a contradição que percebia entre essas duas matrizes, pela
exacerbação de certos cacoetes hauridos nos ornamentos populares (certas
soluções plásticas cambaias, “amadoras” aqui já mencionadas), que, ao
contrastarem de forma gritante com o rigor construtivo que a própria estrutura
das telas exigia, conferiam um sabor diferente às suas telas, colocando-as
entre o popular e o erudito, sem, contudo, configurar uma síntese entre as duas
tradições apropriadas pelo artista.
Tal “sabor diferente” era, de fato, o condimento crítico e
bem humorado que Nassar fazia aderir às suas telas, na verdade. Parece que era esse
condimento quem permitia que o artista estabelecesse um distanciamento entre
essas duas matrizes e mais, um distanciamento frente àquela necessidade – de
resto falsa – de constituição de uma poética unificadora e pacificadora das
diferenças entre o erudito e o popular – a demanda, como foi mencionado, que
motivara os primeiros vagidos de Nassar como artista.
Se tal distanciamento já é passível de ser percebido em
algumas pinturas de início de carreira, é preciso afirmar que a recepção de sua
produção junto ao meio artístico de Belém e do restante do país careceria do
mesmo distanciamento.
*
Se Nassar, com o passar do tempo, e pela análise do
processamento de sua produção, parece ter recebido esses resultados com um
misto de satisfação e ironia (afinal o artista sempre é o primeiro receptor de
sua própria obra), a crítica especializada em geral recebeu sua produção de
maneira crédula: finalmente um artista brasileiro que sintetizava o popular e o
erudito, conseguindo assim – em pleno final do século XX! – produzir uma arte
brasileira, mesmo.
Embora ainda pouco estudada, essa exigência por uma arte
brasileira “típica”, existe desde a Academia Imperial de Belas Artes, no século
XIX. Apesar da inexistência de uma história da crítica de arte no país, é
possível detectar essa demanda como aquela de mais longa duração dentro do
debate artístico local, fenômeno que, das discussões iniciais nas reuniões da
congregação da Academia, extravasou para as colunas de jornais, para os livros,
para várias produções artísticas durante o século XIX e XX e – passados quase
dois séculos – ainda encontra ressonâncias no debate atual sobre arte no
Brasil.
Nesse sentido não é estranho associar o interesse de
constituição de uma arte erudita pautada em matrizes populares da Amazônia, em
meados dos anos 1980, como mais uma manifestação daquele desejo já antigo entre
nós. E não estranha, portanto, a recepção positiva da produção de Nassar que
rapidamente, rompeu os limites de sua região para ser aceita em São Paulo e no
Rio de Janeiro – os centros artísticos e culturais mais dinâmicos do Brasil
naquela época[6].
Voltando à história de Nassar, dá-lhe índices dessa recepção
positiva: convites para individuais no sul do país, para mostras coletivas de
arte brasileiras no exterior, aquisição de suas pinturas por colecionadores e
museus de prestígio.
Essa recepção tão positiva, ao invés de apaziguar as relações
contraditórias que Nassar mantinha com suas pinturas, serviu para acirrá-las.
Se por um lado é possível perceber um Nassar satisfeito, produzindo suas
“geometrias sensíveis”, seus “neoconcretos do Pará” para um público ampliado e
sequioso de novos exemplares de sua poética tão “original” e “brasileira”, por
outro nota-se como aquela dimensão crítica começa a ganhar outros tons de
radicalidade.
E essa radicalidade ganha força, na medida em que o artista,
ao mesmo tempo em que amplia sua consciência crítica a partir do acirramento de
certos procedimentos usados em suas estratégias de apropriação, ao mesmo tempo,
a transfere para a maneira como se relaciona com o circuito de arte.
Um exemplo que talvez sintetize grande parte dessa situação
nova foi a maneira como Nassar resolveu o problema do envio de suas obras para
participarem da exposição “15 artistas brasileiros”, no Museu de Arte Moderna
de São Paulo, em 1996, mostra sob minha responsabilidade: ao invés de cuidar
pra que sua produção fosse enviada de Belém para São Paulo dentro de todo o
rigor hoje requerido para o transporte de obras de arte, Nassar optou por
enviá-las sem nenhum tipo de cuidado especial.
Lembro-me que a explicação dada pelo artista na época estava
ligada ao fato de que aquelas obras, por estarem impregnadas da proveniência
(real ou metafórica) vernacular, podiam viajar muito bem sem cuidados especiais
de preservação. Qualquer dano que viesse a ocorrer a elas seria tranquilamente
absorvido, integrando-se real e conceitualmente a elas.
Claro que essa atitude pode ser creditada, num primeiro
momento, à sua personalidade bonachona, tranquila, “nortista” – diríamos nós,
preconceituosos brasileiros do sudeste. No entanto, existe uma lógica implícita
nesse procedimento do artista que não é nem um pouco bonachona: os objetos
transportados como carga comum apenas ascenderiam ao status de obras de arte ao adentrarem o espaço do Museu para serem
expostos como tal. Neste caso, a crítica ao seu próprio trabalho estava
atrelada à crítica ao sistema da arte como um todo.
Aqueles objetos que, a partir do ingresso no Museu começariam
a ser contemplados como supostas sínteses entre as matrizes popular e erudita,
até minutos antes não passavam de prosaicos objetos, talvez retirados de suas
funções como muros ou paredes. Sínteses de duas estéticas ou comentários sobre
os limites da arte contemporânea? Síntese entre duas estéticas ou frutos de uma
escolha particular do olhar do artista sobre o mundo para chamar a atenção de
todos para como o circuito de arte (aqui incluindo o próprio olhar de Nassar
como um de seus integrantes) era capaz de tornar visíveis e apreciáveis
esteticamente objetos que, fora dele, não passariam da categoria de objetos
prosaicos, frutos da cultura material de uma população quase sempre miserável e
excluída?
Esse conflito presente na atitude de Nassar em relação às
obras enviadas ao MAM – a escolha e imediata eleição das formas à condição de
arte e o concomitante tratamento das mesmas como objetos comuns – perpassará
toda a trajetória do artista a partir de então.
Em algumas situações esses vetores se inverterão. Em outra
ocasião, ainda no MAM de São Paulo, Nassar ofereceu à doação uma série de
bandeiras de municípios do estado do Pará que, reunidas pelo artista – a partir
de uma solicitação feita por ele, via imprensa, a todos os municípios daquele
estado – formariam a instalação Bandeiras,
hoje na coleção do Museu.
Sem dúvida teria sido o olhar de Nassar o responsável por ter
percebido no rol de bandeiras que simbolizavam as cidades paraenses, as
qualidades estéticas que reuniam características tanto das matrizes popular
quanto erudita, caras ao artista. No entanto, no meio daquele grupo de
bandeiras – segundo declaração de Nassar – algumas haviam sido criadas por ele.
Como entender mais esta atitude do artista perante seu
trabalho e o circuito de arte? Nassar poderia ter feito Bandeiras apenas com bandeiras conseguidas por meio de sua
campanha. Sua ação seria bem recebida pelo circuito (como o foi, na verdade).
Ou então poderia ter concebido a instalação apenas com bandeiras concebidas por
ele mesmo, mas com características típicas das bandeiras municipais (o que o
artista faria anos mais tarde, em 2010). Mas por que infiltrar falsas bandeiras
no meio de bandeiras reais?
Dentro de uma lógica própria, Nassar estava dando sinais cada
vez mais claros de que, a partir de sua própria experiência no circuito de
arte, era possível tensionar até a exaustão a cumplicidade e a complacência do
circuito de arte, agindo por meio de ardis que obrigavam os interessados a
revisarem, a cada trabalho apresentado por ele, suas respectivas noções sobre
os limites da arte contemporânea.
Uma provocação ainda mais violenta do artista ocorreu durante
sua retrospectiva, exibida em três capitais do país, entre 2003 e 2004[7].
Na mostra, ao lado das instalações e pinturas que pontuavam alguns dos momentos
considerados mais significativos de sua carreira, o artista apresentava uma
série de fotografias.
A provocação não estava, por certo, no fato de Nassar apresentar
as fotografias. Retrospectivas também podem ter o papel de servir como palco
para a apresentação de certos aspectos desconhecidos do profissional em foco. O
que sem dúvida podia ser visto como uma provocação era a maneira como as fotos
eram apresentadas: medindo 100 x 150cm, e dispostas com todo o rigor
museográfico requerido, dividiam com os outros trabalhos ali dispostos o
interesse do público em conhecer a arte de Nassar.
Mas por que mostrar aquelas fotos que rivalizavam com as
pinturas, não apenas pelas dimensões e montagem “artística” dos dois grupos,
mas também pelo fato de explorarem os mesmos motivos? Quem teria vindo
primeiro, as pinturas ou as fotografias? Teriam sido essas últimas as bases de
inspiração para as primeiras ou vice-versa?
Acima, ao me referir à estratégia de captação do entorno
empregada por Nassar, frisei que ele sempre foi consciente da forma retangular
da tela, igual àquela do visor da câmara fotográfica. O que estava ali
subentendido é que o olhar de Nassar, aquele que elege aquilo que deve ou não
ser resgatado do universo de estímulos que o cerca, é fundamentalmente
fotográfico, ou seja, codificado por esse instrumento de ver o mundo.
No entanto, enquanto ele tornava públicas essas eleições via
pintura, esse olhar fotográfico que o caracteriza, podia ser entendido como
mais uma matriz que havia moldado seu interesse estético. Porém, ao apresentar
as fotografias que produz elevadas à mesma condição de suas pinturas sempre de
corte fotográfico, foi como se Nassar zerasse definitivamente todas as
possíveis diferenças existentes entre a preparação de suas pinturas (as
supostas tomadas fotográficas concretas que poderiam ter servido de bases para
suas pinturas) e elas mesmas. Optar por mostrá-las lado a lado e nas mesmas
condições de arte, era colocar por terra qualquer possibilidade de continuar
pensando a constituição de sua obra como a de um artista enquadrado nas normas
de certa previsibilidade.
Por exemplo: se ele tivesse suas fotografias como o devir de
sua obra ainda em processo, como uma espécie de superação da pintura rumo a uma
técnica mais de acordo com as tendências atuais (de mercado), seria
compreensível, mesmo que dificilmente justificável. Mas também não era dessa
maneira que as fotografias ali se faziam presentes: elas se apresentavam, tendo
a concluir, como mais uma revelação da atitude crítica de Nassar frente ao seu
trabalho e à recepção do mesmo durante toda a sua trajetória profissional até
aquele momento.
Pouco tempo depois, na individual de 2005 na Galeria Milan
Antonio, em São Paulo, Nassar apresenta um mostra – uma instalação, na verdade
– em que chapas modulares de metal encontradas nas ruas de Belém, totalmente
“já feitas”, ou então mandadas produzir em uma oficina daquela cidade, cobriam
as paredes da Galeria. Ao interessado em adquirir um ou mais módulos, Nassar
facultava o direito de escolha ao seu bel-prazer. Cinco anos mais tarde,
utilizando o notebook do artista, o
interessado (colecionador ou curador, não importa) podia montar virtualmente o
conjunto dessas chapas sem necessariamente vê-las de perto.
*
Ao caminhar para o fim de seu texto já citado, Boris Groys
lembra ao leitor que a história da arte começa pelo arquivamento da morte, ou
seja, por meio da ereção de sepulcros, pirâmides e museus, o que significa que
a arte consome o consumo (o que é a morte a não ser “o consumo definitivo de
todas as coisas”?). E ao fazê-lo, arquiva esse consumo.
Em seguida atenta para o fato de que um artista tão
emblemático do pós-guerra, Andy Warhol, antes de tudo se interessava por aquilo
que primeiramente descartamos quando consumimos, transformando em lixo: latas,
embalagens e cartazes:
“De todo modo sabe-se que nossos museus de arte contemporânea
estão repletos de lixo: restos de comida, baganas de cigarros e vidro quebrado.
Mas, precisamente ao consumir o consumo e arquivar cenas de consumo, a arte
consegue escapar à simples submissão à permanente mudança das modas que regem o
consumo de massa – e, ao mesmo tempo, consegue traçar novas variantes,
críticas, do consumo. Assim pois, o artista hoje não se tornou um simples
consumidor, mas sim um consumidor do consumo – e assim, também autor de novos
tipos de conduta consumidora crítica”[8]
A partir desta citação, a pergunta: o que tem sido a
trajetória de Emmanuel Nassar a não ser o crescente enfatizar de uma conduta
consumidora crítica que, partindo do consumo crítico de extratos de uma cultura
material destinada ao lixo ou ao folclore da “cultura popular”, chega, aos
poucos – mas com uma perseverança digna de um suicida (suicida enquanto
artista, dentro dos moldes tradicionais ainda vigentes) – a consumir o consumo
da poética por ele mesmo arquitetada?
[1]
- Este texto, na medida de suas possibilidades, dá continuidade a certas ideias
sobre a obra de Emmanuel Nassar esboçadas primeiramente em dois textos
anteriores escritos por mim: “Da fotografia à pintura à fotografia à pintura à
fotografia: comentários sobre a produção de Emmanuel Nassar (publicado em:
MATTAR, Denise (cur.). Emmanuel Nassar: a
poesia da gambiarra. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2003.
p.137 e segs.) e “Luiz Braga e Emmanuel Nassar: matrizes” (publicado em:
MENEGAZZO, Maria Adélia (org.). Marco
cultural: questões contemporâneas em debate. Campo Grande, MS: Ed. UFMS,
2008, p. 37 e segs.).
[2]
- Em alguns textos que já tive a oportunidade de escrever sobre Emmanuel Nassar
(consultar bibliografia neste volume), essa noção de “artista-editor”, como aquele que
manipula imagens e coisas apropriadas do mundo, já estava na base de muitas das
interpretações ali transcritas. Como este é um tema que muito me interessa, em
outros textos sobre outros artistas brasileiros (Nelson Leirner, Leda Catunda,
Rosângela Rennó e outros) esta questão também aparece. No entanto, foi em um
pequeno texto que escrevi sobre a obra de Alfredo Nicolaiewsky que a expressão
“artista-editor” aparece explicitamente pela primeira vez, inclusive, no título
da pequena apresentação: “O artista como editor”, (folder de apresentação da
exposição individual de Alfredo Nicolaiewsky no Centro Universitário Maria
Antonia, São Paulo, de setembro de 2007 a janeiro de 2008.
[3]
- “El artista como consumidor” in GROYS, Boris. Obra de arte total Stalin: Topología del
arte. La Habana: Centro Teório-Cultural, 2008. p. 150 e segs.
[4]
- op.cit. p. 154.
[5] - PONTUAL, Roberto. América Latina: Geometria Sensível.
Rio de janeiro: Jornal do Brasil, 1978. (Catálogo de exposição)
[6]
- É preciso também somar às
explicações para essa rápida aceitação, a demanda, naquela época, por novos
pintores que ampliassem e tornassem real a propalada “volta à pintura”, uma
estratégia do circuito local e internacional para aumentar sua força, devido às
novas demandas do mercado.
[7]
- A mostra “Emmanuel Nassar: a poesia da gambiarra”, já citada (nota 1), foi apresentada, em
2003, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, no Centro Cultural
Banco do Brasil de Brasília, entre 2003 e 2004 e nesse ano no Centro Tomie
Ohtake, em São Paulo.
[8]
- op. Cit. Pp. 163,164.