sábado, 28 de abril de 2012

EMMANUEL NASSAR: UMA CONDUTA CONSUMIDORA CRÍTICA[1] Tadeu Chiarelli - 2011




Para muitos, a produção de Emmanuel Nassar chega a ser desconcertante: obras que se assemelham a pinturas, mas feitas a partir de pedaços modulados de placas de metal usado para propaganda – riscados, corroídos, e sem nenhum sinal aparente de intervenção manual do artista – que Nassar combina e recombina (muitas vezes no computador, a partir de fotos digitais), até chegar a um resultado que mais o agrada e ao cliente (um colecionador ou um curador, não importa); pinturas que se assemelham a fotografias modernas, de detalhes de objetos ou ornamentos populares; fotografias que se assemelham a pinturas modernas de detalhes de objetos ou de ornamentos populares; obras em tecido, que parecem bandeiras; bandeiras que mais parecem obras em tecido.
A relação acima poderia se estender com mais exemplos dessa maneira peculiar como Emmanuel povoa o circuito de arte atual, esgarçando até o limite as bordas entre arte e arte antiarte, testando, nesse processo, a cumplicidade dos outros componentes do circuito e a complacência do espectador comum.
Essas características visíveis em grande parte da produção recente do artista são resultado de um processo maturado de escolha entre algumas características que foram aparecendo ao longo de sua carreira.
Se hoje em sua obra essa característica desconcertante é mais pronunciada, é importante pontuar que ela nem sempre esteve sozinha, pois Nassar nunca agiu apenas por esta via. Embora hoje ela tenda a ser predominante, houve períodos em sua carreira em que essa atitude fria e crítica perante a sua produção e ao circuito de arte convivia com outras atitudes do artista perante o próprio trabalho. Em sua produção de algum tempo atrás era comum, por exemplo, ao lado dessa atitude que hoje caracteriza sua produção, encontrar trabalhos em que o artista tentava estabelecer certa dimensão lírica e, portanto, “expressiva”, outros em que ele reivindicava a dimensão autoral dos trabalhos que produzia, enfim, uma série de procedimentos que – como veremos – tentava reagir contra a atitude que aos poucos ia se impondo, e que transformaria sua obra mais como um comentário crítico sobre os esquemas que a nutriam do que propriamente a afirmação de uma singularidade artística tradicional.
Este texto não pretende traçar todo o percurso de Nassar explicitando quando e como essas características surgem e como vão se sobrepondo. Meu foco é apenas estabelecer uma interpretação desse fenômeno para, quem sabe, aumentar ainda mais o desconforto que muitos experimentam quando se colocam frente ao trabalho do artista.
Como uma interpretação, os parágrafos que se seguem dizem respeito a como eu percebo e cravo significados a determinados aspectos da trajetória de Nassar, nem sempre convergindo para o que o próprio artista pode pensar sobre determinados aspectos de sua produção e atitudes concretas que tomou em relação ao circuito da arte. Neste sentido, assumo toda responsabilidade sobre o que, neste texto, haverá tanto de documento quanto de ficção.
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Inicio partindo da seguinte premissa: hoje Emmanuel Nassar está ligado a uma atitude comum nas artes visuais desde Marcel Duchamp. Observando sua produção nesses últimos anos percebe-se que ele não mais se identifica com a figura tradicional do artista que produz seu trabalho a partir de uma conjugação entre o pensar e o fazer. Emmanuel, portanto, pode ser caracterizado como um “artista-editor”[2], aquele que seleciona e reordena as coisas e as imagens do mundo, devolvendo-as com outras possibilidades de significação.
O estudioso alemão Boris Groys, no ensaio “El artista como consumidor”[3] aponta algumas questões que irão ajudar nesta interpretação da trajetória de Nassar. Em primeiro lugar, o autor aponta que mais do que um produtor, o artista é hoje “um consumidor de coisas anonimamente produzidas já em circulação em nossa cultura”[4], cabendo-lhe decidir, escolher e combinar esse universo de coisas a partir de um olhar crítico sobre o mesmo, atitude típica de quem consome, de quem escolhe um produto e não de quem o produz.
Essa inversão do papel do artista atual – antes um produtor que colocava o seu produto ao escrutínio do público, hoje um consumidor que escolhe e age sobre o já existente, exercendo, portanto, a crítica – teria desdobramentos significativos que Groys desenvolverá por todo o interessante ensaio. No entanto, creio que para os propósitos desta interpretação caberia apenas guardar o seguinte dado: esse artista-editor, para escolher as imagens ou coisas que vai tomar como suas, está assumindo não apenas uma postura em relação àquilo de que se apropria, mas também em relação aos resultados que desenvolverá a partir desse processo, e ao circuito que os receberá.
Como sabemos, Emmanuel Nassar não está isolado dentro dessa vertente, no âmbito da arte contemporânea no Brasil. A integram artistas como Nelson Leirner, Farnese de Andrade, Hudnilson Jr., Alfredo Nicolaiewsky e diversos outros artistas que – por meio das mais diversas escolhas críticas que desenvolveram ou desenvolvem das coisas do mundo – ampliam em muito as possibilidades da arte do país, hoje em dia.
Tomando este quadro mais geral como base – ou seja, ser um artista-editor é quase que uma “condição” nos dias de hoje, e que no Brasil existe em atuação uma série de artistas com esse espírito crítico –, seria interessante agora proceder a uma espécie de desnudamento dessa condição crítica, ou do seu aparecimento dentro da trajetória de Emmanuel Nassar, pontuando os mecanismos que ela colocou em prática durante seu processo paulatino de amadurecimento enquanto editor do mundo, moldado pelas suas relações com o circuito da arte.
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Como mencionado, Nassar nem sempre agiu como um consumidor crítico das imagens ao seu redor. Ou seja, nem sempre ele teve consciência dessa condição e mesmo quando ela foi emergindo, muitas vezes Nassar se utilizou de procedimentos para suprimir ou, pelo menos, diminuir aquela condição. Em retrospecto, nota-se em sua trajetória momentos em que ele, de fato, parecia acreditar na força expressiva de seu trabalho como expressão de uma autoria pura, mesmo que, já naquela época, operasse dentro de um quadro bastante peculiar de apropriação.
Nassar, desde o princípio, usou como base de sua produção dois vetores ou dois universos imagéticos que embora se desenvolvam em paralelo, e possuam alguns pontos em comum, persistem distanciados: a cultura visual da Amazônia – sobretudo aquela do estado do Pará e, especificamente, de sua capital, Belém – e a tradição construtiva da arte ocidental do século XX, incluindo aqui algumas de suas excelentes desinências brasileiras.
A motivação inicial que levou Nassar a optar pela exploração da primeira daquelas duas matrizes encontra-se na cena cultural de Belém nos anos 1980 em que surge a necessidade de que os artistas eruditos locais plasmassem, fizessem migrar pra suas respectivas produções a riqueza da cultura visual criada pela população mais pobre de Belém.
Pertencente a um grupo de filhos da terra e da classe-média local, sensível ao entorno social e ligado às artes, essa demanda impeliu a ele e a alguns outros então jovens artistas da cidade a uma ação que, apesar de existir faz tempo (desde os românticos dos séculos XVIII e XIX), pode ser entendida também como uma espécie de “operação duchampiana” (desculpem o anacronismo), uma “operação de consumo”, para usarmos a terminologia cunhada por Boris Groys: o artista erudito percebe um manancial de estímulos à sua sensibilidade, vinda da produção das camadas populares ao seu redor. Frente a essa fonte supostamente pura da “verdadeira” visualidade autóctone, ele deverá tomá-la como base para a constituição de uma obra que, embora concebida para circular em um universo culto, possui como suprema justificativa o fato de ser inspirada na “verdade” da população.
Esse tipo específico de apropriação dos estímulos visuais de uma classe social pela outra, de uma cultura pela outra, possui inúmeros exemplos, tanto no Brasil quanto no exterior e não apenas no âmbito das artes visuais.  No caso brasileiro, esse tipo de apropriação – ou de expropriação, para alguns – em alguns períodos ganhou foros de necessidade absoluta.
Em muitas obras do início de sua carreira, Nassar parecia dar provas de acreditar nessa missão e grande parte dos resultados conseguidos no âmbito de suas pinturas daquela época, ele demonstrava resultados positivos quanto ao esforço de trazer para o universo da arte contemporânea brasileira, certos índices notáveis de uma visualidade de cunho popular, típicos da sua região natal.
Em várias das telas que produziu sob esse desígnio inicial, nota-se a ausência mais precisa de qualquer índice autoral, capaz de sinalizar para o fato de que quem teria produzido aquelas pinturas teria sido o próprio Emmanuel Nassar. O processo de apropriação era tão perfeito que o anonimato das matrizes apropriadas parecia ter sido transferido sem nenhuma interferência para o resultado da apropriação.
É interessante notar, no entanto que, frente a esses resultados, Nassar, talvez inseguro dessa virtual perda de autoridade sobre os resultados de sua ação, consciente ou inconscientemente busca procedimentos capazes de reverter esse quadro.
Mas como resolver o impasse? Usar expedientes para criar estilemas de autoria supostamente inequívoca a partir, por exemplo, de uma gestualidade sôfrega, bem ao gosto “expressionista”, estava fora de pauta, sob pena de macular o caráter bidimensional, tão característico das matrizes apropriadas. A solução encontrada por Nassar em alguns trabalhos foi, então, agregar ao campo pictórico suas inicias: E. N., letras que, também planas, ao mesmo tempo em que se adequavam ao caráter bidimensional geral das composições, chamavam para si, resgatavam para o artista a propriedade do resultado da operação de apropriação. Tranquilo agora podia ficar Nassar, tranquilo podia ficar o circuito, pois, afinal, passava a ter certeza de que o objeto à sua frente emulava conscientemente a matriz popular não sendo, portanto, e absolutamente, a produção de um anônimo qualquer.
Após uma série de obras que seguia a mimetizar em telas o universo visual que o cercava, Nassar, parece, não demorou a perceber que a maneira como se apropriava daquilo que via, ao mesmo tempo em que tornava evidente a origem primeira de suas fontes visuais (o extrato popular), trazia índices que aludiam àquela outra tradição, ao outro manancial já enunciado: a vertente construtiva internacional que, no Brasil, possuía resultados poderosos (Niemeyer, concretos e neoconcretos, Volpi, Schendel e outros). A maioria de suas pinturas, de fato, mesmo enfatizando a primeira matriz, ou justamente por isso, fazia transparecer certas soluções de cunho construtivo, passíveis de serem ligadas a uma categoria da produção artística brasileira e latino-americana que, a partir dos anos 1970, ficou sendo conhecida como “geometria sensível”, cunhada pelo crítico Roberto Pontual[5]. De fato, muito da produção de Nassar em seus primeiros anos de carreira, sinalizava para certo “lirismo geométrico”, quer pelo uso propositadamente ingênuo das cores, pelo traçado errôneo das linhas e outros procedimentos.
A percepção dessa possibilidade de conexão entre o popular e o erudito, no entanto, logo começou a ser contaminada pela dimensão crítica, já aludida aqui, que rebaixaria no artista a soberania daquela, digamos, inicial presunção romântica.
Parece que foi justamente pelo fato de Emmanuel Nassar nunca ter sido um romântico (ou, pelo menos, não o tempo todo), o que lhe permitiu ir percebendo que mais do que a expressão de uma síntese entre o popular e o erudito sua produção era uma espécie de comentário ou constatação sobre os pontos em comum passíveis de serem traçados entre ambas. Essa compreensão retirou do artista a crença de que era possível, em pleno anos 1980/1990, evocar possibilidades de qualquer tipo de nativismo de derivação romântica que não beirasse o kitsch ou, no limite, a má-fé.
E como Nassar teria percebido essa dimensão perigosa que sua produção poderia estar trilhando sem que em um primeiro momento ele tivesse se dado conta? Creio que o que deve ter contribuído para o acelerar dessa percepção tenha sido a compreensão paulatina do esquema que ele usava para a produção da maioria de suas telas: tendo a forma retangular da pintura na cabeça – a mesma forma do visor de uma máquina fotográfica, diga-se de passagem – Nassar, à procura das matrizes populares do seu entorno, recortava mentalmente determinados detalhes de ornamento presentes nos mais variados objetos populares que o cercavam, jogando-os no formato da tela. Ao exercer essa apropriação – literal ou metafórica, dependendo de cada obra em particular – o que ele fazia era transplantar aqueles estímulos visuais populares para a grande tradição da pintura ocidental. E dentro desse universo, qual a tradição a que aquela operação feita por ele de imediato se associava? A tradição da pintura de teor construtivo, “sensível” ou “lírico”, pouco importa, pois, de uma maneira ou de outra, qualquer solução sempre estaria conectada àquela tradição.
É interessante que, a partir dessa percepção (que, com certeza, não foi imediata, mas processada a partir de várias pinturas, entremeadas de exercícios alienados do próprio esquema que se desenvolvia), Nassar vai enfatizar a contradição que percebia entre essas duas matrizes, pela exacerbação de certos cacoetes hauridos nos ornamentos populares (certas soluções plásticas cambaias, “amadoras” aqui já mencionadas), que, ao contrastarem de forma gritante com o rigor construtivo que a própria estrutura das telas exigia, conferiam um sabor diferente às suas telas, colocando-as entre o popular e o erudito, sem, contudo, configurar uma síntese entre as duas tradições apropriadas pelo artista.
Tal “sabor diferente” era, de fato, o condimento crítico e bem humorado que Nassar fazia aderir às suas telas, na verdade. Parece que era esse condimento quem permitia que o artista estabelecesse um distanciamento entre essas duas matrizes e mais, um distanciamento frente àquela necessidade – de resto falsa – de constituição de uma poética unificadora e pacificadora das diferenças entre o erudito e o popular – a demanda, como foi mencionado, que motivara os primeiros vagidos de Nassar como artista.
Se tal distanciamento já é passível de ser percebido em algumas pinturas de início de carreira, é preciso afirmar que a recepção de sua produção junto ao meio artístico de Belém e do restante do país careceria do mesmo distanciamento.
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Se Nassar, com o passar do tempo, e pela análise do processamento de sua produção, parece ter recebido esses resultados com um misto de satisfação e ironia (afinal o artista sempre é o primeiro receptor de sua própria obra), a crítica especializada em geral recebeu sua produção de maneira crédula: finalmente um artista brasileiro que sintetizava o popular e o erudito, conseguindo assim – em pleno final do século XX! – produzir uma arte brasileira, mesmo.
Embora ainda pouco estudada, essa exigência por uma arte brasileira “típica”, existe desde a Academia Imperial de Belas Artes, no século XIX. Apesar da inexistência de uma história da crítica de arte no país, é possível detectar essa demanda como aquela de mais longa duração dentro do debate artístico local, fenômeno que, das discussões iniciais nas reuniões da congregação da Academia, extravasou para as colunas de jornais, para os livros, para várias produções artísticas durante o século XIX e XX e – passados quase dois séculos – ainda encontra ressonâncias no debate atual sobre arte no Brasil.
Nesse sentido não é estranho associar o interesse de constituição de uma arte erudita pautada em matrizes populares da Amazônia, em meados dos anos 1980, como mais uma manifestação daquele desejo já antigo entre nós. E não estranha, portanto, a recepção positiva da produção de Nassar que rapidamente, rompeu os limites de sua região para ser aceita em São Paulo e no Rio de Janeiro – os centros artísticos e culturais mais dinâmicos do Brasil naquela época[6].
Voltando à história de Nassar, dá-lhe índices dessa recepção positiva: convites para individuais no sul do país, para mostras coletivas de arte brasileiras no exterior, aquisição de suas pinturas por colecionadores e museus de prestígio.
Essa recepção tão positiva, ao invés de apaziguar as relações contraditórias que Nassar mantinha com suas pinturas, serviu para acirrá-las. Se por um lado é possível perceber um Nassar satisfeito, produzindo suas “geometrias sensíveis”, seus “neoconcretos do Pará” para um público ampliado e sequioso de novos exemplares de sua poética tão “original” e “brasileira”, por outro nota-se como aquela dimensão crítica começa a ganhar outros tons de radicalidade.
E essa radicalidade ganha força, na medida em que o artista, ao mesmo tempo em que amplia sua consciência crítica a partir do acirramento de certos procedimentos usados em suas estratégias de apropriação, ao mesmo tempo, a transfere para a maneira como se relaciona com o circuito de arte.
Um exemplo que talvez sintetize grande parte dessa situação nova foi a maneira como Nassar resolveu o problema do envio de suas obras para participarem da exposição “15 artistas brasileiros”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1996, mostra sob minha responsabilidade: ao invés de cuidar pra que sua produção fosse enviada de Belém para São Paulo dentro de todo o rigor hoje requerido para o transporte de obras de arte, Nassar optou por enviá-las sem nenhum tipo de cuidado especial.
Lembro-me que a explicação dada pelo artista na época estava ligada ao fato de que aquelas obras, por estarem impregnadas da proveniência (real ou metafórica) vernacular, podiam viajar muito bem sem cuidados especiais de preservação. Qualquer dano que viesse a ocorrer a elas seria tranquilamente absorvido, integrando-se real e conceitualmente a elas.
Claro que essa atitude pode ser creditada, num primeiro momento, à sua personalidade bonachona, tranquila, “nortista” – diríamos nós, preconceituosos brasileiros do sudeste. No entanto, existe uma lógica implícita nesse procedimento do artista que não é nem um pouco bonachona: os objetos transportados como carga comum apenas ascenderiam ao status de obras de arte ao adentrarem o espaço do Museu para serem expostos como tal. Neste caso, a crítica ao seu próprio trabalho estava atrelada à crítica ao sistema da arte como um todo.
Aqueles objetos que, a partir do ingresso no Museu começariam a ser contemplados como supostas sínteses entre as matrizes popular e erudita, até minutos antes não passavam de prosaicos objetos, talvez retirados de suas funções como muros ou paredes. Sínteses de duas estéticas ou comentários sobre os limites da arte contemporânea? Síntese entre duas estéticas ou frutos de uma escolha particular do olhar do artista sobre o mundo para chamar a atenção de todos para como o circuito de arte (aqui incluindo o próprio olhar de Nassar como um de seus integrantes) era capaz de tornar visíveis e apreciáveis esteticamente objetos que, fora dele, não passariam da categoria de objetos prosaicos, frutos da cultura material de uma população quase sempre miserável e excluída?
Esse conflito presente na atitude de Nassar em relação às obras enviadas ao MAM – a escolha e imediata eleição das formas à condição de arte e o concomitante tratamento das mesmas como objetos comuns – perpassará toda a trajetória do artista a partir de então.
Em algumas situações esses vetores se inverterão. Em outra ocasião, ainda no MAM de São Paulo, Nassar ofereceu à doação uma série de bandeiras de municípios do estado do Pará que, reunidas pelo artista – a partir de uma solicitação feita por ele, via imprensa, a todos os municípios daquele estado – formariam a instalação Bandeiras, hoje na coleção do Museu.
Sem dúvida teria sido o olhar de Nassar o responsável por ter percebido no rol de bandeiras que simbolizavam as cidades paraenses, as qualidades estéticas que reuniam características tanto das matrizes popular quanto erudita, caras ao artista. No entanto, no meio daquele grupo de bandeiras – segundo declaração de Nassar – algumas haviam sido criadas por ele.
Como entender mais esta atitude do artista perante seu trabalho e o circuito de arte? Nassar poderia ter feito Bandeiras apenas com bandeiras conseguidas por meio de sua campanha. Sua ação seria bem recebida pelo circuito (como o foi, na verdade). Ou então poderia ter concebido a instalação apenas com bandeiras concebidas por ele mesmo, mas com características típicas das bandeiras municipais (o que o artista faria anos mais tarde, em 2010). Mas por que infiltrar falsas bandeiras no meio de bandeiras reais?
Dentro de uma lógica própria, Nassar estava dando sinais cada vez mais claros de que, a partir de sua própria experiência no circuito de arte, era possível tensionar até a exaustão a cumplicidade e a complacência do circuito de arte, agindo por meio de ardis que obrigavam os interessados a revisarem, a cada trabalho apresentado por ele, suas respectivas noções sobre os limites da arte contemporânea.
Uma provocação ainda mais violenta do artista ocorreu durante sua retrospectiva, exibida em três capitais do país, entre 2003 e 2004[7]. Na mostra, ao lado das instalações e pinturas que pontuavam alguns dos momentos considerados mais significativos de sua carreira, o artista apresentava uma série de fotografias.
A provocação não estava, por certo, no fato de Nassar apresentar as fotografias. Retrospectivas também podem ter o papel de servir como palco para a apresentação de certos aspectos desconhecidos do profissional em foco. O que sem dúvida podia ser visto como uma provocação era a maneira como as fotos eram apresentadas: medindo 100 x 150cm, e dispostas com todo o rigor museográfico requerido, dividiam com os outros trabalhos ali dispostos o interesse do público em conhecer a arte de Nassar.
Mas por que mostrar aquelas fotos que rivalizavam com as pinturas, não apenas pelas dimensões e montagem “artística” dos dois grupos, mas também pelo fato de explorarem os mesmos motivos? Quem teria vindo primeiro, as pinturas ou as fotografias? Teriam sido essas últimas as bases de inspiração para as primeiras ou vice-versa?
Acima, ao me referir à estratégia de captação do entorno empregada por Nassar, frisei que ele sempre foi consciente da forma retangular da tela, igual àquela do visor da câmara fotográfica. O que estava ali subentendido é que o olhar de Nassar, aquele que elege aquilo que deve ou não ser resgatado do universo de estímulos que o cerca, é fundamentalmente fotográfico, ou seja, codificado por esse instrumento de ver o mundo.
No entanto, enquanto ele tornava públicas essas eleições via pintura, esse olhar fotográfico que o caracteriza, podia ser entendido como mais uma matriz que havia moldado seu interesse estético. Porém, ao apresentar as fotografias que produz elevadas à mesma condição de suas pinturas sempre de corte fotográfico, foi como se Nassar zerasse definitivamente todas as possíveis diferenças existentes entre a preparação de suas pinturas (as supostas tomadas fotográficas concretas que poderiam ter servido de bases para suas pinturas) e elas mesmas. Optar por mostrá-las lado a lado e nas mesmas condições de arte, era colocar por terra qualquer possibilidade de continuar pensando a constituição de sua obra como a de um artista enquadrado nas normas de certa previsibilidade.
Por exemplo: se ele tivesse suas fotografias como o devir de sua obra ainda em processo, como uma espécie de superação da pintura rumo a uma técnica mais de acordo com as tendências atuais (de mercado), seria compreensível, mesmo que dificilmente justificável. Mas também não era dessa maneira que as fotografias ali se faziam presentes: elas se apresentavam, tendo a concluir, como mais uma revelação da atitude crítica de Nassar frente ao seu trabalho e à recepção do mesmo durante toda a sua trajetória profissional até aquele momento.
Pouco tempo depois, na individual de 2005 na Galeria Milan Antonio, em São Paulo, Nassar apresenta um mostra – uma instalação, na verdade – em que chapas modulares de metal encontradas nas ruas de Belém, totalmente “já feitas”, ou então mandadas produzir em uma oficina daquela cidade, cobriam as paredes da Galeria. Ao interessado em adquirir um ou mais módulos, Nassar facultava o direito de escolha ao seu bel-prazer. Cinco anos mais tarde, utilizando o notebook do artista, o interessado (colecionador ou curador, não importa) podia montar virtualmente o conjunto dessas chapas sem necessariamente vê-las de perto.
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Ao caminhar para o fim de seu texto já citado, Boris Groys lembra ao leitor que a história da arte começa pelo arquivamento da morte, ou seja, por meio da ereção de sepulcros, pirâmides e museus, o que significa que a arte consome o consumo (o que é a morte a não ser “o consumo definitivo de todas as coisas”?). E ao fazê-lo, arquiva esse consumo.
Em seguida atenta para o fato de que um artista tão emblemático do pós-guerra, Andy Warhol, antes de tudo se interessava por aquilo que primeiramente descartamos quando consumimos, transformando em lixo: latas, embalagens e cartazes:
“De todo modo sabe-se que nossos museus de arte contemporânea estão repletos de lixo: restos de comida, baganas de cigarros e vidro quebrado. Mas, precisamente ao consumir o consumo e arquivar cenas de consumo, a arte consegue escapar à simples submissão à permanente mudança das modas que regem o consumo de massa – e, ao mesmo tempo, consegue traçar novas variantes, críticas, do consumo. Assim pois, o artista hoje não se tornou um simples consumidor, mas sim um consumidor do consumo – e assim, também autor de novos tipos de conduta consumidora crítica”[8]
A partir desta citação, a pergunta: o que tem sido a trajetória de Emmanuel Nassar a não ser o crescente enfatizar de uma conduta consumidora crítica que, partindo do consumo crítico de extratos de uma cultura material destinada ao lixo ou ao folclore da “cultura popular”, chega, aos poucos – mas com uma perseverança digna de um suicida (suicida enquanto artista, dentro dos moldes tradicionais ainda vigentes) – a consumir o consumo da poética por ele mesmo arquitetada?



[1] - Este texto, na medida de suas possibilidades, dá continuidade a certas ideias sobre a obra de Emmanuel Nassar esboçadas primeiramente em dois textos anteriores escritos por mim: “Da fotografia à pintura à fotografia à pintura à fotografia: comentários sobre a produção de Emmanuel Nassar (publicado em: MATTAR, Denise (cur.). Emmanuel Nassar: a poesia da gambiarra. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2003. p.137 e segs.) e “Luiz Braga e Emmanuel Nassar: matrizes” (publicado em: MENEGAZZO, Maria Adélia (org.). Marco cultural: questões contemporâneas em debate. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2008, p. 37 e segs.).
[2] - Em alguns textos que já tive a oportunidade de escrever sobre Emmanuel Nassar (consultar bibliografia neste volume), essa noção de “artista-editor”, como aquele que manipula imagens e coisas apropriadas do mundo, já estava na base de muitas das interpretações ali transcritas. Como este é um tema que muito me interessa, em outros textos sobre outros artistas brasileiros (Nelson Leirner, Leda Catunda, Rosângela Rennó e outros) esta questão também aparece. No entanto, foi em um pequeno texto que escrevi sobre a obra de Alfredo Nicolaiewsky que a expressão “artista-editor” aparece explicitamente pela primeira vez, inclusive, no título da pequena apresentação: “O artista como editor”, (folder de apresentação da exposição individual de Alfredo Nicolaiewsky no Centro Universitário Maria Antonia, São Paulo, de setembro de 2007 a janeiro de 2008.
[3] - “El artista como consumidor” in GROYS, Boris. Obra de arte total Stalin: Topología del arte. La Habana: Centro Teório-Cultural, 2008. p. 150 e segs.
[4] - op.cit. p. 154.
[5] - PONTUAL, Roberto. América Latina: Geometria Sensível. Rio de janeiro: Jornal do Brasil, 1978. (Catálogo de exposição)
[6] - É preciso também somar às explicações para essa rápida aceitação, a demanda, naquela época, por novos pintores que ampliassem e tornassem real a propalada “volta à pintura”, uma estratégia do circuito local e internacional para aumentar sua força, devido às novas demandas do mercado.

[7] - A mostra “Emmanuel Nassar: a poesia da gambiarra”, já citada (nota 1),  foi apresentada, em 2003, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, entre 2003 e 2004 e nesse ano no Centro Tomie Ohtake, em São Paulo.
[8] - op. Cit. Pp. 163,164.