EMMANUEL NASSAR APROFUNDA A CIÊNCIA DO ESPAÇO EM SUA OBRA.
Nelson Aguilar
Artigo publicado
Folha de São Paulo
12 de abril de 1989
De Belém do Pará provém Emmanuel Nassar. Nos anos vinte, enquanto o projeto modernista ardia, ouve uma proposta de universalização do regional. De cada parte do Brasil nasceria uma cultura, mas desgeografizada, pronta para o cosmos. O paraense Ismael Nery não realizaria esta ponte, preocupado que estava de atingir o universal sem se ater ao singular. Mais de sessenta anos depois, Nassar fará jus à pintura e ao mundo circundante.
O artista amazônico consegue feito inacreditável: Aprofundar a ciência do espaço de seu predecessor. Não se trata de concorrer com as zonas puras de cores alinhadas do geometrista. Em Nassar, as aberturas são organizadas por pequenos incidentes na extensão inimaginável da tela.Convoca o concretismo, a arte pop e a conceitual para um encontro assombroso. Falo de arte concreta suficientemente forte para conter Barnett Newman. Veja-se por exemplo as duas faixas verdes, pseudocolunas que, ao mesmo tempo, sustentam e distraem o painel “Noite e Dia”. A arte pop comparece nas rodas da sorte, parentes subnutridos dos “Sonhos Americanos” de Robert Indiana. Enfim, do curto-circuito entre a imagem e o conceito, às vezes engendrando formas inesperadas, mas pertinentes, o pintor sulca a contemporaneidade.
Como reagir ao gigantismo do espaço circundante, a trechos do rio onde subitamente não se vê nenhuma das margens? Uma tela é um fragmento do universo elaborado pelo artista onde os pontos cardiais do sentir iniciam caminhos do extravio. Justamente o contrário de um mapa. Itinerários sim, mas o do corpo vivido e jamais os do espaço geográfico.
Nassar percebe o abismo entre a ciência e a existência. Com intuição de navegante, decifra no leito das águas sinais de terra. Ei-los em “Bilheteria”, onde um pequeno losango que abriga o algarismo 2 singra seu percurso no interespaço vasto entre o floreado de um guichê nas fraldas de uma cortina azul e vermelha no bordo inferior do quadro.
O tratamento imagístico resvala pelo desenho do mau gosto recolhido judiciosamente por Nassar. Alguns quadros recuperam os trejeitos dos desenhistas de latrina, como “Sorvete” e sobretudo “Hollywood”. O artista desce ao inferno do primitivismo gráfico para melhor desnudar a relação entre a imagem e o conceito. De “Sorvete” afloram duas ninfas de botequim numa imensa região amarela coroada pela cunha branca do gosto congelado, índice do erotismo tropical, cruzamento repentino do quente com o frio. Molduras vermelhas remetem o conjunto a um choque cromático ruidoso.
A sutileza relacional de Nassar não escapou aos olhos dos curadores alemães que organizaram a exposição de alguns artistas brasileiros em Hannover, Leverkusen e Stuttgard internacionalmente. O artista paraense corre ao lado de David Salle e Francesco Clementi sem perder especificidade. Prova-o fartamente “Gambiarra”.
A palavra efetua uma curiosa viagem semântica. Proveniente da linguagem teatral, refere-se à rampa de luzes num palco. Todavia, no norte do país, designa a oficina mecânica, graças a processo analógico por si só criativo. Nassar, não satisfeito com o percurso semântico, cria um redobro visual. Será necessário recorrer a um achado nacional de Haroldo de Campos para compreender “Gambiarra”. Haroldo, a fim de elucidar o papel da cor em Tarsila do Amaral, lança a hipótese de um “quali-índice”, u seja, “uma qualidade concreta, relacionada genuína e existencialmente com seu objeto, e que funciona como um efetivo sinete do verídico”. O artista aqui se abre justamente ao vermelho que incendeia as funilarias metropolitanas e interioranas. Arremessa chaves inglesas negras em ambos cantos da tela, aludindo à bandeira pirata. O auge do requinte está presente nas varetas prateadas – outra cor em “quali-índice” - que recortam o espaço pictórico. Uma das varetas se trunca e sofre solução de continuidade através de uma emenda. Oficina mecânica, paraíso dos “bricoleurs”, entraste gloriosamente no mundo das idéias graças ao semiótico Emmanuel Nassar.
Nelson Aguilar
Artigo publicado
Folha de São Paulo
12 de abril de 1989
De Belém do Pará provém Emmanuel Nassar. Nos anos vinte, enquanto o projeto modernista ardia, ouve uma proposta de universalização do regional. De cada parte do Brasil nasceria uma cultura, mas desgeografizada, pronta para o cosmos. O paraense Ismael Nery não realizaria esta ponte, preocupado que estava de atingir o universal sem se ater ao singular. Mais de sessenta anos depois, Nassar fará jus à pintura e ao mundo circundante.
O artista amazônico consegue feito inacreditável: Aprofundar a ciência do espaço de seu predecessor. Não se trata de concorrer com as zonas puras de cores alinhadas do geometrista. Em Nassar, as aberturas são organizadas por pequenos incidentes na extensão inimaginável da tela.Convoca o concretismo, a arte pop e a conceitual para um encontro assombroso. Falo de arte concreta suficientemente forte para conter Barnett Newman. Veja-se por exemplo as duas faixas verdes, pseudocolunas que, ao mesmo tempo, sustentam e distraem o painel “Noite e Dia”. A arte pop comparece nas rodas da sorte, parentes subnutridos dos “Sonhos Americanos” de Robert Indiana. Enfim, do curto-circuito entre a imagem e o conceito, às vezes engendrando formas inesperadas, mas pertinentes, o pintor sulca a contemporaneidade.
Como reagir ao gigantismo do espaço circundante, a trechos do rio onde subitamente não se vê nenhuma das margens? Uma tela é um fragmento do universo elaborado pelo artista onde os pontos cardiais do sentir iniciam caminhos do extravio. Justamente o contrário de um mapa. Itinerários sim, mas o do corpo vivido e jamais os do espaço geográfico.
Nassar percebe o abismo entre a ciência e a existência. Com intuição de navegante, decifra no leito das águas sinais de terra. Ei-los em “Bilheteria”, onde um pequeno losango que abriga o algarismo 2 singra seu percurso no interespaço vasto entre o floreado de um guichê nas fraldas de uma cortina azul e vermelha no bordo inferior do quadro.
O tratamento imagístico resvala pelo desenho do mau gosto recolhido judiciosamente por Nassar. Alguns quadros recuperam os trejeitos dos desenhistas de latrina, como “Sorvete” e sobretudo “Hollywood”. O artista desce ao inferno do primitivismo gráfico para melhor desnudar a relação entre a imagem e o conceito. De “Sorvete” afloram duas ninfas de botequim numa imensa região amarela coroada pela cunha branca do gosto congelado, índice do erotismo tropical, cruzamento repentino do quente com o frio. Molduras vermelhas remetem o conjunto a um choque cromático ruidoso.
A sutileza relacional de Nassar não escapou aos olhos dos curadores alemães que organizaram a exposição de alguns artistas brasileiros em Hannover, Leverkusen e Stuttgard internacionalmente. O artista paraense corre ao lado de David Salle e Francesco Clementi sem perder especificidade. Prova-o fartamente “Gambiarra”.
A palavra efetua uma curiosa viagem semântica. Proveniente da linguagem teatral, refere-se à rampa de luzes num palco. Todavia, no norte do país, designa a oficina mecânica, graças a processo analógico por si só criativo. Nassar, não satisfeito com o percurso semântico, cria um redobro visual. Será necessário recorrer a um achado nacional de Haroldo de Campos para compreender “Gambiarra”. Haroldo, a fim de elucidar o papel da cor em Tarsila do Amaral, lança a hipótese de um “quali-índice”, u seja, “uma qualidade concreta, relacionada genuína e existencialmente com seu objeto, e que funciona como um efetivo sinete do verídico”. O artista aqui se abre justamente ao vermelho que incendeia as funilarias metropolitanas e interioranas. Arremessa chaves inglesas negras em ambos cantos da tela, aludindo à bandeira pirata. O auge do requinte está presente nas varetas prateadas – outra cor em “quali-índice” - que recortam o espaço pictórico. Uma das varetas se trunca e sofre solução de continuidade através de uma emenda. Oficina mecânica, paraíso dos “bricoleurs”, entraste gloriosamente no mundo das idéias graças ao semiótico Emmanuel Nassar.