segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Tadeu Chiarelli/ Revista Galeria/ São Paulo/ 1089

EMMANUEL NASSAR: ERUDITO E POPULAR
Tadeu Chiarelli

Revista Galeria nº14, 1989




“Para Lílian e Ivo”
Observando as pinturas de Emmanuel Nassar do começo da década até 86/87, muitos as perceberam como herdeiras espúrias das correntes construtivas internacionais e brasileiras deste século, devido ao uso de cores abusivamente luminosas, exóticas, e de ornamentos de derivação popular. No entanto, numa observação um pouco mais demorada, as próprias pinturas parecem emitir um certo desconforto em relação à tradição erudita construtiva, como se não suportassem adequar-se às normas que a regem. E de onde partiria este desconforto? Em primeiro lugar do uso que Nassar faz da cor naqueles trabalhos. Neles, as cores, ao mesmo tempo em que obedecem a uma determinação interna da pintura, estabelecendo planos cromáticos interdependentes no microcosmo do plano (um sinal de conhecimento das normas do construtivismo erudito), reproduzem com fidelidade as cores percebidas pelo artista nos objetos que o circundam no seu dia-a-dia sob o sol luminoso de Belém, onde o artista reside.

Aí o primeiro sinal de inadequação ao repertório construtivo ortodoxo: as cores naquelas pinturas, mesmo obedecendo a uma razão interna, estrutural, obedecem igualmente a uma razão exterior, pois tendem a ser fiéis às cores percebidas no entorno de Nassar. Essa persistência da “cor local”, esse caráter naturalista, pode-se dizer, de sua pintura, a retira da tradição erudita do construtivismo internacional e brasileiro, colocando-a em sua fronteira, pois, para aquela tradição, qualquer índice de analogia com o real deve ser repelido.

A partir daí, o uso de elementos ornamentais de extração popular e a premeditada fragilidade gestual do traçado das bordas dos campos de cores das pinturas só aumentam o distanciamento da pintura de Nassar em relação às postulações do construtivismo erudito.

No entanto, se a preocupação com elementos extrínsecos à pintura fizeram com que as obras daquela fase de Nassar só pudessem dialogar com a tradição construtiva internacional a uma certa distância, um outro tipo de consciência presente naquelas pinturas impede que elas possam ser percebidas como exemplares genuínos da razão construtiva presente em algumas manifestações estéticas das populações do Norte do país.

Sem dúvida Nassar percebe aquela estética popular “de dentro”, apropria-se dela como algo que lhe pertence, que faz parte do seu cotidiano. Porém, o substrato erudito do artista conseguido através de sua formação, e demonstrado na estruturação que sabe dar às suas “cores paraenses” no campo da pintura e na ornamentação refinada dos elementos da maioria de suas composições daquela fase, afasta seus trabalhos da estética construtiva popular, colocando-os igualmente à margem.

Tão erudita quanto popular, ou nem muito erudita nem muito popular, Essa fase do artista deve ser entendida como uma intersecção singular entre as duas correntes construtivas citadas. Mas é necessário dizer que justamente a inadequação a um código previamente estabelecido, essa consciência de trazer dentro de si elementos das duas tradições construtivas e não pertencer propriamente a nenhuma delas, foi o que permitiu à produção de Nassar estabelecer um diálogo de fato origina com (e entre) aquelas duas tradições, único no Brasil.

HIBRIDISMO

A condição interseccional dessa produção de Nassar, em que se percebem elementos tanto da tradição construtiva erudita quanto popular, regional, além de ser original dentro do circuito de arte do país (poucos artistas brasileiros desta década optaram por uma produção conscientemente híbrida), ganha uma significação particular, na medida que se mostra conectada com uma tendência internacional desses anos 80, quando vários artistas surgidos nesta década em vários paises também trabalharam em suas produções com elementos de linguagens internacionais, acoplados a elementos de origem facilmente localizável. Apenas como exemplo, bastaria lembrar alguns artistas alemães surgidos nesses anos que, ao lado da utilização de códigos internacionais em suas obras, recorreram sempre a uma visualidade tradicionalmente alemã, quando não a uma “memória cultural alemã” mais ampla, como nos casos de Kiefer, Fetting e Penck, entre outros. Diversos exemplos também poderiam ser citados, pinçando das cenas artísticas da Itália, do Japão e dos Estados Unidos, artistas como Chia, Di Stasio, Tadanori Yokoo, Cindy Sherman, Robert Longo etc.

Voltando ao caso de Nassar, percebe-se que mais recentemente o artista parece ter esgotado suas possibilidades de atuação naquela latitude fronteiriça entre a tradição construtiva erudita e a popular. Percebe-se em suas pinturas atuais como que uma “opção preferencial” pelo universo visual das camadas periféricas de Belém.

Este universo escolhido pelo artista guarda uma complexidade típica do atual estágio da sociedade de massa no Brasil. Se nele ainda é possível encontrar objetos trabalhados com aquela ornamentação de caráter construtivo (que, como foi dito, o artista se utilizou na fase anterior), esse universo ainda é composto pelo desenho “inculto”, presente em tabuletas de pontos comercias, carrocerias de caminhões, anúncios de produtos etc. e – igualmente – por imagens geradas pelos meios de comunicação de massa dos grandes centros nacionais e internacionais que aos poucos vão interagindo com os outros dois tipos de manifestações regionais, por contigüidade ou sobreposição. Este universo popular, portanto, não é composto apenas de imagens originadas apenas naquela população. O desejo de uma visualidade popular “pura” e “incontaminada” hoje, mais do que nunca, apresenta-se como uma impossibilidade.

SOTAQUE REGIONALISTA

E é a partir desse repertório em transformação que Nassar vem produzindo suas obras atuais vistas em São Paulo na Galeria Luisa Strina, em abril. Nessa fase, a produção do artista guarda uma aproximação “naturalista” com o real, percebida no tratamento das cores em sua fase anterior. Os diversos elementos que compõe o repertório visual popular do Norte são tratados pelo artista em suas relações de contigüidade e sobreposição numa apropriação fria, em que se percebe mais uma constatação distanciada da realidade daquele universo cheio de peculiaridades do que propriamente um diálogo com o mesmo. Essas novas características do momento atual do trabalho de Nassar apontam para uma aderência do artista aos procedimentos da Pop Art norte-americana acrescidos, é claro, de um “sotaque” regionalista que, na verdade, caracterizou sempre aqueles procedimentos, onde quer que eles tenham se manifestado.

No entanto essas características parecem não passar apenas de uma fase de transição na trajetória do artista. Os projetos ambientais que Nassar vem idealizando – e cujos primeiros exemplares devem se concretizar na sua individual, ainda este ano, na Thomas Cohn e na sua participação na 20ª Bienal Internacional de São Paulo – denunciam que sua relação com o universo visual popular tende a radicalizar-se numa apropriação mais engajada na qual muito provavelmente o artista voltará a realizar obras tão significativas e interessantes quanto aquelas comentadas no início deste artigo que marcaram seu ingresso no circuito de arte brasileiro.