terça-feira, 29 de junho de 2010

O sonho de Nassar


Agnaldo Farias
catálogo Bandeiras,1998
Bandeiras, Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1998


Alguns artistas produzem obras ensimesmadas, obras que guardam uma prudente distância do mundo, que não se deixam macular pelo cotidiano, pela sujeira e pelo ruído que travam o ar impregnando nossas roupas e peles, pelo suor que transborda quando sob o sol a pino efetuamos o mesmo périplo de todos os dias. São obras que perseguem a pureza e a virtude das coisas lácteas, rejeitam a presença da sombra, porque lhes desagradam a iminência do mistério, a possibilidade súbita da magia. São produzidas nas oficinas assépticas da razão e também, por conta disso, exigem cordialidade e subserviência dos materiais que lhes garantem a existência física.

E há artistas como Emmanuel Nassar, que produzem obras abertas ao contato com o mundo, tão interessadas nessa proximidade que freqüentemente se confundem com ele. Alinhadas com um dos vetores preponderantes do pensamento contemporâneo tencionam e destroem a fronteira que separam os objetos reconhecidos como artísticos daqueles que não o são. Diversamente dos resultados obtidos sob o crivo da razão, esses resultados são antes sintéticos do que analíticos, perseguem antes a ambigüidade do que a leitura exata, capaz de apreender de um só golpe todas as lúcidas faces de um cristal.

E porque germinam do entrelaçamento de organismos e de ordens de linguagens que se vão bifurcando, nessas obras as significações são tão proliferantes que não se pode reduzi-las a este ou aquele aspecto. É comum nessas obras a natureza comparecer ostensivamente, de tal modo que as melodias que delas emanam possuem o timbre e o comportamento do material de que são feitas. Cada material – metal, pedra, couro, madeira, líquidos etc. – é escolhido em função das suas peculiaridades, e é freqüente acusarem a ação do tempo que lhes faz variar a textura, cor, densidade, peso, temperatura, brilho... O artista, então, é aquele que nos oferece a fascinante possibilidade de testemunhar a vida que habita todas as coisas existentes.

Outras vezes o artista caminha em direção ao mundo mas não para destacar os materiais que a natureza lhe oferece em sua pureza, e sim para se apropriar de objetos criados pela ação humana. Desde que Marcel Duchamp fez coincidir com a ação artística a simples apropriação e deslocamento do seu contexto original um urinol, uma roda de bicicleta e uma reprodução de Mona Lisa, entre tantos outros objetos, e que Picasso juntou um selim com um guidons de bicicleta para fazer alusão a um touro e assim alardear a plasticidade intrínseca das coisas existentes, o mundo da arte, assim como nosso olhar sobre o mundo, nunca mais foi o mesmo.

Emmanuel Nassar pertence à linhagem dos artistas que se detêm sobre o mundo e dele recolhem a substância de sua expressão. E o que mais lhe interessa são as imagens e coisas tidas como demasiado simples: as pinturas toscas e os artefatos e a arquitetura pertencentes ao extrato mais pobre da sua Belém natal.

É fato que ainda insistimos em julgar as imagens e objetos existentes sob a ótica de um olhar culto, como se tudo fosse concebido no patamar da alta cultura. A questão não se agüenta de tão anacrônica, o que não impede de continuar vigorando em alguns rincões do país. Com efeito, mira-se com desdém tudo aquilo que se fabrica fora do padrão culto, por acreditar-se que a assim chamada expressão popular nada mais é que um rebaixamento, uma reprodução canhestra quando não degradada da ordem superior.

Por tudo isso, para que essa questão seja enriquecida com novas proposições, é imperativo deixar-nos conduzir pela poética de Emmanuel Nassar.

Convém visitar através de suas obras o conjunto de casas, galpões, barracos e as pequenas construções precárias feitas de tábuas corridas, que se vão acotovelando encarrapitadas e por cujas frestas se entrevê o chão lamacento do mangue, o fluxo constante do rio.

Conservam um quê da arquitetura móvel dos barcos, com seus cascos coloridos deslizando rio abaixo acima, recortando o verde compacto da floresta ribeirinha, com o ritmo pipocado de seus motores a desprenderem fumaça e cheiro e a pontuarem metronomicamente a cacofonia dos pássaros, dos animais, e a cantiga suave dos ventos nas árvores.

Com as sombras crepusculares, cada uma dessas construções ressurge aoreolada com colares de lâmpadas tenuemente coloridas, enfiadas ao longo de fios compridos, que correm junto aos batentes de portas e janelas, marcando-os, na junção da cobertura com as paredes e em tramas regulares que acompanham a geometria das tesouras que dão sustentação ao teto. São pequenos pontos amarelos, vermelhos, azuis e verdes a borrarem a penumbra do ambiente, compondo com o feerismo das tiras de bandeirinhas de papel de seda, com as pinturas multicoloridas que por vezes invadem todas as paredes em representações de cenas, animais e símbolos locais; os motivos que enfeitam as estampas das toalhas, que infundem uma alegria singela ao mobiliário pobre e retinindo nos prateados que emolduram os painéis de controle dos equipamentos eletrônicos e das caixas de som que despejam uma música alta, álacre e variada.

Nassar sempre chamou atenção pela delicadeza e interesse com que se volta ao que há de banal e humilde no mundo. Sob seus olhos, a margem da vida social que no caso de Belém são as margens de cada um dos filamentos da teia líquida dos rios, é o palco onde são encenadas lições líricas da engenhosidade humana, da sua inesgotável capacidade de simbolizar e de improvisar diante da carência de meios. Nassar é o poeta do precário, do cambaio, da gambiarra, da solução imaginativa e do desenho esconso, que surpreende pelo vigor com que aos nossos olhos atualiza nosso desejo atávico de expressão diante da infinita riqueza do mundo. E ele realiza sua obra sem escamotear sua origem de classe, sua condição de pessoa edulcorada, com formação superior. Seu projeto poético vem se afirmando na construção de um amálgama entre o seu repertório e aquele que a experiência junto à expressão popular lhe oferece como um sumo vivo.

Por tudo quanto aqui foi dito é que a instalação “Bandeiras” afigura-se como um momento maior na sua trajetória artística. A reunião das bandeiras de todos os municípios do Pará, expostas de modo a recobrir as paredes do espaço expositivo, tanto enseja que reflitamos sobre o significado desse símbolo, imemorialmente utilizado pela mais simples das aldeias até o mais dilatado dos impérios, quanto de uma poética que viceja, extraindo sua seiva do corpo de símbolos e imagens que seu Estado natal oferece.

Com sua arbitrariedade construtiva, intrínseca à sua natureza a um só tempo ideológica e de linguagem visual, cada bandeira com sua iconografia singela ou não, cada bandeira ondulando ao vento sobre nossas cabeças, será sempre a materialização daquilo que de melhor se possui e pelo qual se gostaria de ser conhecido.

Agnaldo Farias, 1998.