segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Ligia Canongia/ catálogo exposição Laura Marsiaj/ Rio/ 2000

EMMANUEL NASSAR – UM POP BRASILEIRO?
Lígia Canongia

Catálogo da Exposição
Galeria Laura Marsiaj
Rio de Janeiro, 2000




É preciso dizer que não há nada de ingênuo nesta pintura. Emmanuel Nassar realiza um trabalho mental, em que as fontes primitivas são processadas pelo pensamento e por comentários mordazes. Apesar da apropriação de signos e técnicas populares, a idéia não parece ser o simples elogio da precariedade ou da inocência. Recuperar as origens e sustentar a sabedoria popular podem ser sinais aparentes, mas o trabalho não se esgota em observações de cunho antropológico. Nem o uso da imagética popular parece ser apenas um brinde à natureza amazônica e suas tradições, contexto onde vive o artista. O que a pintura de Nassar aponta, ao contrário, é para uma discussão essencialmente pictórica, para a possibilidade de se criar uma arte "pop brasileira". E essa é uma questão que se insere em um campo particularmente especulativo, rondando a produção artística nacional desde os anos 60. Afinal, como poderia um artista brasileiro, em especial um artista da região norte do país, interpretar e ajustar às suas próprias condições as premissas que lhe foram lançadas por uma sociedade tão diferente, social e culturalmente, como a norte-americana? O que se pode reter da pop original, guardando-se as características culturais distintas, e sem trair os princípios básicos que orientaram o seu projeto? É possível pensar a arte pop fora do circuito industrializado e tecnológico, longe dos meios avançados da comunicação de massa? Nassar procura mostrar que sim.O erro da produção da década de 60 no Brasil foi assimilar apenas a superfície da questão pop, a sua iconografia urbana e publicitária, fazendo uma leitura puramente formal, sem compreender o sentido trágicodaquela "exterioridade". O artista pop americano estava interessado em demonstrar o cinismo da felicidade movida pela propaganda e pelo consumo, queria provar que o processo da standardização não afetava apenas o ciclo dos produtos, mas a própria condição humana. E fazia isso procurando despersonalizar-se a si mesmo, para que a idéia da impessoalidade e da repetição reafirmasse o poder corrosivo dos estereótipos. Entre nós a coisa foi diferente: o artista brasileiro dos 60 envolveu sua arte pop de uma paixão explícita, cercada de anotações vivas e pessoais, cheias de crítica. A pop original não era crítica, era imparcial, acompanhava de perto a perda da concepção humanista das novas sociedades, onde as pessoas se tornam coisas, são tratadas como gêneros de consumo; sociedades portanto mórbidas e perversas. O sentido da pop está nessa ironia à distância, na manipulação neutra da realidade, na mera apropriação das imagens emblemáticas do mundo burguês. Com toda a sua exuberância iconográfica e cromática, havia ali um certo humor negro.Ora, há certas afinidades aí com o trabalho de Emmanuel Nassar. Sua pintura pode ter uma informação remota da arte construtiva, dada a clareza das superfícies e a busca de uma ordem simétrica, mas a questão não é a geometria, a imaginação é pop. Só que os signos não são mais oriundos dos mass media, mas das baixas classes populares de um país do terceiro mundo. É porém com a mesma aleatoriedade que ele seleciona essas imagens, que podem ser flores, brinquedos, engenhos primitivos, mas também baterias de automóveis, serras elétricas e foguetes, numa mistura que indetermina o valor simbólico de cada coisa. Na verdade, mesmo os objetos simples e ingênuos figurados na pintura de Nassar são tratados por ele como estereótipos. Formas quase standards que reconhecemos como "brasileiras" e "regionais", e que têm o caráter demarcador de territórios, de costumes e práticas identificáveis e repetidas. Claes Oldenburg disse: "se vejo um Arp e coloco esse Arp na forma de um catchup, isso reduzirá o Arp, ampliará o catchup, ou torna tudo igual?" 1 A maneira com que Nassar utiliza as coisas insignificantes do fazer primitivo e os signos fortes da sociedade bélica e industrial também são formas de redução de tudo ao mesmo. Afinal, o "bom selvagem amazônico" convive hoje com os eflúvios multiculturais, vê televisão e assiste a reclames comerciais. As classes populares, e sobretudo a classe média, quer nos EUA, quer no interior do Brasil, tendem a absorver informações sem qualquer juízo crítico. A uniformização também pode estar em certo tipo de imaginário popular pobre, acostumado com a produção dos mesmos objetos, das mesmas engenhocas. Geringonças de subúrbio, placas de caminhão, o mapa do Brasil são os nossos símbolos banais, compõem o nosso universo mais vulgarizado. O tom ingênuo da pintura de Nassar, a sua pseudopoesia provinciana é um despiste para a mordacidade. Sua ironia à distância é a mesma, com doses sutis, mas premeditadas, de humor.
De certa forma, ele ao mesmo tempo lamenta e valoriza o primitivismo do norte do Brasil, como os americanos, simultaneamente, lamentavam e endeusavam a subcultura de massas, com o mesmo cinismo. E tudo é tratado com objetividade. É claro que lances biográficos do artista brasileiro estão imbuídos no processo. Só que essa "biografia" não comparece de maneira lírica, num jorro subjetivo, assumidamente apaixonado, como no pop brasileiro dos anos 60. Quando Mário Pedrosa fala do "sertanejo Dias", ela fala de uma obra cheia de paixão e violência, que "não nos dá um comentário jornalístico como no pop americano, mas antes um pedaço bruto de vida." 2 Nassar, ao invés, é discreto, tenta objetivar seus enunciados, daí inclusive a extrema economia gráfica. O que os norte-americanos falavam com abundância de elementos, ele fala com economia, reage à fartura com a pobreza, mas a neutralidade está lá. Uns, com o muito e a monumentalidade, outro com o pouco e a secura, mas tudo reduzido a emblema, buscando o que há no emblema de genérico e de síntese. As próprias iniciais EN do nome do artista, presentes em muitas obras, são emblemáticas, não remetem ao "sujeito" Emmanuel Nassar, a alguém que se esclarece pessoal e propositadamente no trabalho. Essas iniciais se confundem, dada a sua colocação na pintura, com as direções Norte e Este, que, aliás, não orientam coisa alguma. São disfarces do sujeito e da significação da obra, reduzidas a qualquer outra coisa, com o mesmo valor de qualquer outro signo presente: EN e um brinquedinho de plástico são como um Arp e um catchup.As cores solares de Nassar, luminosas e equatoriais, colam-se, sem dúvida, ao meio "regional" do artista, mas não mais do que as cores esfuziantes da pop americana colavam-se a seu contexto específico. Para o artista americano, a cor devia ser forte e chapada, como nos anúncios publicitários. Para Nassar, que foi inclusive um profissional de publicidade, a cor também deve ter aquela lisura imparcial, que indetermine a "mão do artista". Nassar, porém, tem como referência a luz natural, o americano tem a luz do neon. Mas como nos lembra Roland Barthes, a referência da pop americana "é, ao final, exatamente como nos bons tempos da arte clássica: a Natureza. Certo, não mais a Natureza vegetal, paisagística, ou humana e psicológica; hoje a natureza é o social absoluto, ou melhor ainda, o coletivo." 3 Medidas distintas,funções proporcionais de um mesmo impulso, ambas são maneiras de detectar no âmbito poético da arte o funcionamento das sociedades. É claro que alguns poderão dizer, e não sem motivo, que a pintura de Nassar não tem absolutamente a neutralidade de um pop como Warhol, que sua arte mantém sinais afetivos, sua ironia está permeada de metáforas e de humanismo, mas é quando perguntamos: e em George Segal, seria diferente? Teria sido Segal totalmente anônimo ao abordar o anonimato? É claro também que a inserção da arte pop, tal como se configurou originalmente, seria difícil de penetrar na sociedade brasileira mesmo hoje, e sobretudo na região norte do país, tão precária industrialmente. Mas, o que queremos dizer é que a resposta de Emmanuel Nassar aos princípios firmados pelo universo pop não deixa de ser uma possível resposta "pop brasileira", pensada com inteligência, sem drama, ajustada aos limites do nosso imaginário e do nosso repertório.1; Claes Oldenburg - in H.B.Chipp , Teorias da Arte Moderna, ed. Martins Fontes, São Paulo, 1996
2; Pedrosa, Mário; in Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília, ed.Perspectiva, São Paulo, 1981
3.Barthes, Roland; in Pop Art, Evoluzione di unaGenerazione, ed. Electa Editrice, Veneza, 1980



Emmanuel Nassar – A brazilian pop?
Ligia Canongia/ 2000

One must say that there is nothing naïve about the painting. Emmanuel Nassar performs a mental task, in which primitive sources are processed by the thought and by sharp comments. Although appropriating popular signs and techniques, it does not seem to be only mere praise to precariousness or to innocence. Retrieving the origins and supporting folklore may be the apparent signs but the work isn't reduced to anthropological observations. Neither the use of popular imagery seems to be just hailing Amazonian nature and its traditions, the context where the artist lives. On the contrary, what Nassar's painting points to is to an essentially pictorial discussion, to the possibility of creating Brazilian pop art. And this is an issue that places itself within an essentially speculative field, one that has been seen swirling around the national artistic output since the 60's. After all, how can a Brazilian artist ' particularly one living in the north of the country interpret and adjust to his own conditions the propositions launched by a totally different society, socially and culturally, as is the North American society? What could be retained from the original pop, respecting the distinct cultural characteristics, without betraying the basic principles that guided its project? Is it possible to think of pop art outside the industrialized and technological world, away from the cutting-edge media of mass communication? Nassar tries to show that, yes, it is.
The mistake incurred by Brazilian art in the 60's was the assimilation of what was only at the surface of the pop issue, its urban and its publicity iconography, effecting only a purely formal reading of the phenomenon, without grasping the tragic meaning of such exteriority'. American pop artists were interested in demonstrating the cynicism of happiness driven by publicity and consumerism; they wanted to prove that the process of standardization did not only affect the product cycle, but the very human condition. And they did so, depersonalizing themselves, so that the idea of impersonality and repetition would reaffirm the corrosive power of stereotypes. Among us, things went a little different: Brazilian artists in the 60's enveloped their pop art with explicit passion, surrounded with lively and personal observations loaded with criticism. The original pop was not critical, it was impartial, following closely the loss of the humanistic concept in the new societies, where people become things, treated as consumer goods - therefore morbid and perverse societies. The meaning in pop lies in this distant irony, in the neutral manipulation of reality, in the mere appropriation of emblematic images of the bourgeois world. Despite all its iconographic and chromatic exuberance, there was a certain dark humor about it.
Well, that is where one can find certain affinities with Nassar's work. His painting might contain some remote information that can be traced back to constructive art, given the clearness of surfaces and the quest for symmetrical order, but the question isn't about geometry, it's the imagination that goes pop. The signs don't originate any more from the mass media, but from the lower classes of a third world country. He used however the same randomness for image selection: flowers, toys, primitive contrivances, but also car batteries, chainsaws and rockets, in a mixture that renders indeterminate the symbolic value of each thing. In fact, even the simplest and most naïve objects displayed in Nassar's paintings are treated as stereotypes. Shapes that are almost standards, recognizable as Brazilian' and regional', forms that clearly state their origins, bringing about identifiable, repeated habits and practices. Claes Oldenburg said: if I see an Arp and I use this Arp as in the form of ketchup, will this reduce the Arp, will it amplify the ketchup, or does it make everything equal? The way Nassar makes use of insignificant things of primitive facture and of powerful signs of a bellicose industrial society are also means of reducing everything to the same thing. After all, the „noble Amazonian savage has to live today with multicultural emanations, watching TV and its commercials. The lower classes, particularly middle class, whether in the US or in the backlands of Brazil, tend to absorb information without any critical judgment. Standardization may also be found in a certain type of popular imagery spread out among the poor, who are very much used to the production of the same objects, the same gadgets. Low-class jerrybuilt contraptions, truck license plates, Brazil's map - all are trite symbols for us, our most widely vulgarized universe. The naïve undertone in Nassar's paintings, his provincial pseudo-poetry is a disguise for sharpness. His distant irony is the same, in subtle but premeditated doses of humor. In a certain way, he is at the same time criticizing and lending value to northern Brazil primitivism as Americans simultaneously lamented and worshiped the subculture of the masses with the same cynicism. And everything is treated objectively. Of course biographical data of the Brazilian artist is embedded in the process. But his biography' does not contribute in a lyrical fashion, like the unabashedly passionate and subjective outpouring as in Brazilian pop art in the 60's. When Mario Pedrosa mentions the countryman Dias', he is talking about works filled with violence and passion that „do not convey journalistic commentary as in American pop, but rather a raw chunk of life.‰ Nassar instead, is discreetly trying to externalize his propositions- therefore his extreme graphic frugality. What North Americans expressed with an abundance of elements, he does it sparingly, reacting to affluence with poverty but neutrality is still there. Some came with very much and with monumentality, others with very little and with dryness, all reduced to emblems, in the search of what is generic and synthetic within the emblem. The artist's initials - EN- as seen in many of his works, are emblematic. They do not refer to the subject- Emmanuel Nassar, to someone who makes himself personally and purposefully clear through his works. The initials, given their positioning in the painting, might be taken for directions like North and East which, in the end, don't lead anywhere. They are disguises for the subject and for the meaning of the artwork, both reduced to just like any other thing, holding the same value as any other signs used: EN, a little plastic toy are the same as Arp and ketchup.
Nassar's solar colors, luminous and equatorial, undoubtedly stick with the regional environment of the artist, but to no greater extent than the dazzling colors of American pop stuck with their specific context. For the American artist, color should be bold and flat, like in publicity ads. For Nassar, who has also been a professional in the publicity area, color should also possess that impartial flatness, so that it would not determine the 'artist's hand'. Nassar's reference is natural light, while for the American artist is the neon light. But as we are reminded by Roland Barthes, American pop arts reference „is, in the end, exactly what it was in the good old times of classic art: Nature. Certainly, not any more as vegetation or landscape, neither as in human or psychological nature; nature today is the absolute social, or better still, the collective social.‰ Distinct measures, proportional functions of one same impulse, both are ways to detect the functioning of societies within the poetical scope of art.
Of course some may say, and not without a reason, that Nassar's painting hasn't got anything of the neutrality of a pop artist like Warhol, that his art keeps hold of affective signs, that his irony is permeated with metaphors and humanism. But then we may ask: what about George Segal, is it different with him? Was Segal being totally anonymous when he dealt with the subject of anonymity? Besides, the insertion of pop art, as it originally happened, would surely find difficult penetration in Brazilian society even today, moreover in the north of the country, which is very precarious industrially. But what we are trying to say is that Emmanuel Nassar's response to the tenets set by the pop universe is no less than a possible Brazilian pop', thought over with intelligence, un-dramatically, adjusted to the limits of our imagery and our repertoire.