segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Tadeu Chiarelli/ ArtPará97/ Belém 1997

SOBRE “BRASIL”, DE EMMANUEL NASSAR.
Tadeu Chiarelli




Alguém poderá perguntar: por que a produção de Emmanuel Nassar vem sendo tão reconhecida no sul do país, e mesmo fora do Brasil? Esta é uma pergunta interessante e talvez possa servir de pretexto para a introdução desta apresentação da instalação que o artista concebeu para participar como convidado especial do Arte Pará deste ano.

Um dos procedimentos que vêm sendo bastante usados por artistas de todo o mundo – e com maior ênfase desde a década passada -, é aquele da apropriação. Profissionais das mais diversas origens, ao invés de investirem na concepção de imagens ou formas supostamente originais, preferem trabalhar com aquelas já existentes, concedendo-lhes outras oportunidades de interpretação.

Talvez o primeiro, ou o principal, universo de imagens a ser apropriado pelos artistas a partir dos anos 80, tenha sido aquele ligado à história da arte: imagens e formas de origem renascentista, ou barroca, ou cubista, ou..., Foram retiradas de seu contexto inicial, destituídas de seu significado de origem e manipuladas como puros significantes à procura – supostamente – de outros sentidos.

A razão para a presença marcante deste tipo de procedimento na produção artística dos últimos anos tem suas origens em diversas causas.

Com o fim das utopias políticas, e a consciência do esgotamento do projeto moderno, as imagens concebidas pela humanidade desde o início de sua história passaram a interessar a vários artistas apenas em sua aparência: sem o significado que a originou (e que as legitimava), esses artistas contemporâneos começaram a desloca-las de suas origens, desconstruindo códigos até então tidos como eternos.

Alguns precursores desses artistas merecem ser citados aqui: Marcel Duchamp e Andy Warhol. O primeiro, apropriando-se e deslocando a imagem da “Mona Lisa” para um contexto de irreverência iconoclasta, chamava a atenção para a intensa banalização desse mito, devido a mercantilização do mesmo como símbolo máximo das “belas artes”. Já Andy Warhol, nos anos 60, ao se apropriar indiscriminadamente de imagens documentais de desastres, da cadeira elétrica, dos produtos de consumo e/ou dos ídolos do cinema, e ao trata-los da mesma maneira, desconstruia o significado original das mesmas, apontando para a impossibilidade da arte manter-se como modo de produção de um saber capaz de ordenar o mundo.

Parafraseando Giullo Carlo Argan, se antes da II Guerra era a arte que dava significado ao mundo, agora é o mundo que se vê obrigado a dar significado à arte.

A partir dos anos 80, como foi dito, uma série de artistas se voltou, então, para a apropriação de imagens, como elemento fundamental para a constituição de sua obra. Sandro Chia, na Itália, trafegava, numa mesma obra, pelos desenhos de Michelangelo e pelas pinturas de Kandinsky, sem se preocupar com as razões que levaram aqueles artistas, tão separados no tempo e no espaço, a criarem aquelas formas e procedimentos técnicos. O artista se apropriava dos estilemas daquelas linguagens plásticas históricas para apontar a impossibilidade da arte contemporânea comunicar qualquer coisa à não ser – a princípio – sua própria presença.

Anselm Klefer, na Alemanha, revisitava o passado de seu país, a partir da recupe-ração da pintura romântica e das imagens que marcaram a sociedade onde nasceu... Descontextualizados e agrupados segundo o arbítrio do artista, aquele procedimento pictórico e aquelas imagens pareciam índices desesperados de impotência da sociedade contemporânea em criar novas alternativas para seu futuro. Esta é uma interpretação possível.

No Brasil, a estratégia de apropriação lançou novos artistas no circuito da arte nacional e internacional, com características muito peculiares. Dentre eles, a primeira a chamar a atenção da crítica e da mídia, talvez tenha sido Leda Catunda. Atenta ao riquíssimo universo de imagens a sua volta, a artista, no início de sua carreira, usava imagens oriundas da história da arte, da cultura de massa e da cultura popular, para desestabilizar a noção de arte enquanto linguagem previamente codificada.

Outros artistas surgiram no Brasil além de Catunda, tendo como base de seus trabalhos a apreciação: Sérgio Romagnolo, por exemplo, iria produzir pinturas e depois esculturas, tendo como base o repertório de imagens das histórias em quadrinhos e da arte colonial brasileira; Paulo Pasta constituiria sua pintura inicial pautando-se no legado da arte italiana, na herança pictórica de Volpi e de outros artistas imigrantes; Rosângela Rennó, por sua vez, iria tentar dar outros significados à quantidade imensa de fotografias esquecidas por seus produtores...

É dentro deste contexto, onde a apropriação de imagens e procedimentos estilísticos preexistentes tornam-se a base da produção de diversos artistas, que surge Emmanuel Nassar, um dos principais nomes da arte brasileira contemporânea.

E qual seria a fonte primeira para as apropriações de Nassar?Justamente o sentido ornamental encontrado na arquitetura e nos artefatos de extração popular, encontrados em Belém e no Norte do país. Mas, que o leitor não se iluda: Nassar não é um artista que simplesmente se apropria de um universo de cores e formas populares para, ingenuamente, enaltecer a “pureza” e a “criatividade” do bravo povo do Norte.

Atento à suposta banalização e esgotamento das linguagens plásticas eruditas, Nassar percebeu que esses elementos populares apontados acima guardavam semelhanças no mínimo desestabilizadoras dos conceitos que regeram (e ainda regem) uma das maiores tradições da arte neste século no Brasil e no exterior: o construtivismo, que no país bifurcou-se nas vertentes concreta e neoconcreta.

(Não que Nassar tenha sido o primeiro a perceber tais semelhanças, mas foi o primeiro e único a tratá-las com humor e ironia, sem resquício sequer de romantismo piegas, gerado pela má consciência que assola muitos de nossos artistas).

Esse olho atento e irônico do artista percebeu que a melhor resposta ao processo de mitificação dessa corrente seria contamina-la pela visualidade popular de sua região natal que, ao mesmo tempo em que se assemelha à tradição construtiva, nega-a tanto pelos procedimentos usados para a sua constituição, quanto pela introdução de elementos totalmente estranhos a ela.

Fazendo conviver em sua obra dois universos visuais aparentemente tão próximos – a tradição construtiva erudita e a tradição popular (tão impura) -, e, ao mesmo tempo, tão separados em seus conceitos e propósitos, o artista na verdade acaba zerando as duas linguagens, fazendo com que sua obra sobreviva como um poderoso e colorido curto-circuito nas engrenagens que ligam – e desagregam - essas duas tradições.

Poderíamos rapidamente comparar uma pintura de Nassar com uma de Hércules Barsotti, um dos principais pintores brasileiros surgidos com o neoconcretismo. Na produção de Barsotti são as cores rigorosamente trabalhadas que preenchem o campo plástico, criando formas que tendem a levar o expectador a conceitos de lirismo, ordem e pureza.

Nas pinturas de Nassar, a verdade das cores constituindo o campo da pintura é problematizada pela proposital insegurança no traçado e/ou pela inclusão não esperada de elementos decididamente alheios à “ordem” construtiva: imagens toscas de membros humanos decepados, representações ilusionistas de pregos e outros instrumentos... Mesmo as iniciais do nome do artista (“E” e “N”) absolutamente não querem atestar a bidimensionalidade do plano (tão cara a tradição erudita construtiva), não. Elas, incorporadas à pintura, tendem a preenche-la de um sentido simbólico, autobiográfico mesmo, praticamente inexistente na arte construtiva de origem erudita.

O que Nassar pretende com sua pintura? O mesmo que seus colegas de geração, desestabilizar o consagrado, trazer lirismo e humor A uma tradição; negar a noção da arte como linguagem capaz de oferecer ao espectador uma mensagem previsível e apriorística da realidade que o cerca.

E é justamente neste contexto completamente desidealizado que deve ser percebida a sua instalação “Brasil”. Numa sala branca com o chão forrado de carvão, em uma das paredes o espectador encontrará uma pintura negra sobre alumínio e, no centro dela, o mapa do Brasil com seu contorno precariamente pintado de vermelho.

Uma metáfora do desmatamento da Amazônia? Uma representação simbólica do país ardendo em chamas?...

A arte contemporânea, justamente por não se atrelar a códigos preconcebidos, ou por, em sua configuração final, desconstruí-los, acaba deixando margem para todos os tipos de interpretação. De fato, “Brasil”, de Nassar, pode ser tudo isso que foi descrito no parágrafo acima, justamente por não ser nada disso, a princípio.

Aquela obra conta com a sensibilidade do público para que lhe seja conferido algum sentido. No entanto, seria no mínimo primário afirmar que o artista não tenha partido de nenhum conceito para a produção de “Brasil”.
A instalação, antes de significar qualquer coisa, torna visível a arbitrariedade de um signo: aquela forma em vermelho, que nos acostumamos a decodificar como sendo a re-presentação do país, parece pulsar inquieta na sua impossibilidade concreta de se significar o que lhe foi outorgado. É uma forma, como qualquer outra, apropriada por Nassar para questionar aquilo que o artista vem reiterando em toda a sua produção: a falência dos códigos, o extermínio dos significados instituídos, a precessão dos simulacros, como diria o teórico francês...

As interpretações possíveis que o público possa vir a fazer da proposta do artista são legítimas e legitimadoras da própria proposta. É, em última instância, o que a torna uma obra de arte. Mas são o que são: interpretações, espécie de contribuições ao trabalho do artista, que lhe conferem um resultado para que transcenda sua materialidade crua.



ON ‘BRASIL’, BY EMMANUEL NASSAR
Tadeu Chiarelli
One might ask: why is it that Emmanuel Nassar’s output has been so widely acclaimed in southern Brazil, and even abroad? This is an interesting question that may serve as a pretext to introduce this presentation for the installation conceived by the artist to participate as special guest artist at ‘Arte Pará’ this year.
One of the procedures very much in use by artists throughout the world – mainly since the last decade – is that of appropriation. Professionals from the most diverse origins, instead of investing in conceiving supposedly original images or forms, prefer to work with already extant ones, granting them new opportunities of interpretation.
Perhaps the first and foremost universe of images appropriated by artists from the ‘80s on was art history: images and shapes from various periods in time – renaissance, baroque, cubist or else – were removed from their initial context, deprived of their original meaning and manipulated as pure signifiers in search of – supposedly – other meanings.
The reason for the marked presence of such a procedure in the artistic output of recent years has its origins rooted in various causes.
With the end of political utopias and the awareness of exhaustion of the modern project, images conceived by mankind since the dawn of history became interesting to various artists just for their semblance: without the signification that originated and legitimized it, contemporary artists started dislocating them from their origins, de-cosntructing codes that were held as eternal until then.
Two predecessors of such artists deserve to be mentioned here: Marcel Duchamp and Andy Warhol. The former, appropriating and dislocating the image of the ‘Mona Lisa’ into a context of iconoclast irreverence, drew attention to the intense trivialization of such a myth, owing to a mercantilistic use of said image as the topmost symbol of the ‘fine arts’. Andy Warhol in the ‘60s, indiscriminately appropriated documental images of accidents, of the electric chair, of consumer products and/or movie idols, and by giving them all the same treatment, he deconstructed their original meaning, pointing to the impossibility of art to maintain itself as a means of production of a knowledge capable of arranging the world.
Paraphrasing Giulio Carlo Argan, if prior to World War II it was art that imparted meaning to the world, now it’s the world that sees itself forced to impart signification to art.
As from the ‘80s, a series of artists turned to image appropriation, as a fundamental element for the constitution of their works.
Sandro Chia, in Italy, wandered from Michelangelo’s drawings to Kandinky’s paintings within the same work, not worrying about the reasons that drove those artists, so much apart both in time and space, into creating such forms and technical procedures. The artist appropriated stylistic units from those art-historical visual idioms to point out the impossibility of contemporary art in communicating anything except – in principle – its very presence.
Anselm Kiefer, in Germany, revisited his country’s past, departing from the recuperation of romantic painting and of the images that have marked the society where he was born.... De-contextualized and grouped according to the artist’s will, the painterly procedures and the images seemed like desperate indicators of contemporary society’s impotence to create new alternatives for its future. This is one possible interpretation.
In Brazil, the strategy of appropriation launched new artists into the national art circuit, with very peculiar characteristics. Among these, the first one to attract both media and critical attention is perhaps Leda Catunda. Attentive to the wealthy universe of images around her, early on the artist made use of images from art history, mass and folk culture, in order to destabilize the notion of art as a previously codified idiom.
Other artists in Brazil, besides Catunda, based their works on appreciation/appropriation (Nota do Tradutor: apesar de Aline ter confirmado a palavra ‘apreciação’, acho que houve um lapso, a palavra deve ser mesmo ‘apropriação’. Em todo caso estão aí as duas): Sérgio Romagnolo, for instance, would produce paintings and sculptures based on a repertoire of images culled from comic books and from Brazilian colonial art; Paulo Pasta would create his early paintings based on the Italian art legacy, on Volpi and the pictorial heritage of other immigrant artists; Rosângela Rennó, in turn, would try to impart other meanings to an immense quantity of photos forsaken by the ones who produced them.
It’s within this context, where image appropriation and pre-existent stylistic procedures become the production basis for diverse artists, that Emmanuel Nassar, one of the leading names in Brazilian contemporary art, produces his works.
And which would be the primal source of Nassar’s appropriations? Precisely the ornamental aspect in architecture and in crafts of folkish extraction, as seen in Belém and northern Brazil. But let not the reader be mistaken: Nassar is not an artist who simply appropriates a universe of popular colors and forms, to naïvely extol the ‘purity’ and ‘creativity’ of the brave folks from the North.
Attentive to an alleged trivialization and exhaustion of scholarly visual arts’ languages, Nassar realized that the above mentioned popular elements held similarities that, at least, destabilized the concepts that ruled (and still rule) one of the major art traditions in this century, both in Brazil and abroad: constructivism, which in Brazil split into concretism and neo-concretism.
(Nassar was not the first one to note such similarities, but he was the first and the only one to treat them with humor and irony, without any trace of mushy romanticism, generated by a bad-conscience feeling that haunts many of our artists.)
The artist’s ironical and keen eye realized that the best response to the mythologizing process of this line of thought was to contaminate it with the folk visual imagery of his native region, that although similar to constructivist tradition, at the same time denies it not only by the procedures used for its constitution, but also by the introduction of elements that are totally alien to it.
In his works, two apparently close visual universes are brought into coexistence – the learned constructivist tradition and the folk tradition (so impure) – and at the same time very much distant in what concerns concepts and aims, so that the artist actually ends up by making tabula rasa of both idioms, making his work survive as a powerful and colorful short-circuit in the gears that link – and un-link – these two traditions.
One could quickly compare a painting by Nassar to one by Hércules Barsotti, one of the leading Brazilian painters to emerge wih neo-concretism. In Barsotti’s output, the rigorously labored colors fill up the plastic visual field, creating forms that tend to lead the viewer to concepts of lyricism, order and purity.
In Nassar’s paintings, the truth of colors constituting the pictorial field is rendered problematic by the purposeful insecurity of the tracing and/or by the unexpected addition of elements that are decisively alien to constructivist ‘order’: crude images of severed human limbs, illusionistic representations of nails and other instruments... Even the artist’s initials, ‘E’ and ‘N’, do not wish to certify the two-dimensionality of the plane (so dear to constructivist scholarly tradition). Incorporated to the painting, they tend to vest it with a symbolic, even autobiographical meaning, a practically inexistent trait in constructive art of erudite origin.
What’s Nassar up to with his painting? The same as his peers of the same generation: to destabilize the established, to bring lyricism and humor to a tradition and to refute the notion of art as a language capable of offering the viewer a predictable, a priori message from the surrounding reality.
And it’s precisely within this totally un-idealized context that the installation ‘Brasil’ should be construed: a white room whose floor is covered with coal; on a wall the viewer finds a black painting on aluminum bearing the map of Brazil precariously outlined in red on its center.
A metaphor for Amazonian forest extinction? A symbolic interpretation of the country ablaze?...
Contemporary art, precisely for not being harnessed to preconceived codes or for the deconstruction of such codes in its final configuration, leaves room for all sorts of interpretations. In fact, ‘Brasil’ by Nassar, can be all that was said in the previous paragraph precisely for not being none of that, in principle.
The work counts on the sensitivity of the public to bestow some sense to it. Nevertheless, it would be at least rudimentary to state that the artist did not depart from any concept framework for the production of ‘Brasil’.
The installation, prior to meaning anything, renders visible the arbitrariness of a sign: that red shape, which we got used to decoding as the representation of the country, seems to throb restlessly in its concrete impossibility of signifying what was assigned to it. It’s a shape like any other, appropriated by Nassar in order to question that which the artist has been reiterating throughout his production: the demise of the codes, the extermination of institutionalized meanings, the preeminence of the simulacrum, as the French theoretician would put it...
The possible interpretations that the public might infer from the artist’s proposition are legitimate and they legitimize the proposition itself. This is what ultimately makes it an artwork. But they are what they are: interpretations, a sort of contribution to the artist’s work, vesting it with results so that it may transcend its raw materiality.

Translated by Paulo Andrade Lemos
Rio de Janeiro, May 2001.