segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Stella Teixeira de Barros/ Catálogo exposição Thomas Cohn/ Rio 1994

AS TRANSLÚCIDAS MÃOS DE NASSAR
Stella Teixeira de Barros




Uma das facetas mais sedutoras da pintura de Emmanuel Nassar é o tom e o sabor da ironia sutil de suas figuras, que ele busca com sensibilidade no desvalido imaginário popular da periferia da grande cidade. Nas imagens miúdas e rarefeitas, sobre o fundo da tela imprecisamente geometrisado, ele capta com intuição aguda o ambiente que o circunda. Belém do Pará, onde vive, é uma cidade que floresceu em ponto nevrálgico: de um lado, está situada próxima à densa floresta e a beira do rio Amazonas em sua embocadura. Ambos são pantagruélicos, pois sua enormidade e esplendor exorbitam a escala humana. Mas, de outro lado, a cidade abre-se para a brisa suave do mar e recebe o brilho do sol equatorial. O mar e a claridade do sol amenizam a atmosfera sufocante da floresta e do rio, transformam e leveza e deleite o pezadumbre do gigantismo amazônico, moderam as lembranças da falência do ciclo da borracha, que há um século liquidava a euforia do enriquecimento, falência que ainda acabrunha o território rio acima. Porto de confluências e contrastes, Belém do Pará reflete os conflitos culturais e sociais que ali assomam, e que são, de resto, apenas parte do cenário de desconcertos que se estende pelo país.

Em nenhum momento a pintura de Nassar deixa de aludir à idéia de uma interpretação do Brasil. Ele revive, através de um material iconográfico reduzidíssimo, a interpretação do nosso modo de ser e agir, traduzindo surtos desgarrados da condição amazônica, numa apropriação crítica que nos fornece uma chave para a compreensão da cultura brasileira.

Nassar consegue perfazer uma síntese do mundo em que vive, sem se deixar levar pelo engodo do exotismo superficial e anacrônico. Suas figuras recuperam com muito sabor, pelo recorte que perfazem, certos momentos que a memória intuitiva do artista recria, ao resgatar imagens parvas e embrutecidas da vida cotidiana da cidade grande, do circo, dos anúncios publicitários. Sem apologias, sem engajamentos panfletários. Mesmo as mãos decepadas dispensam qualquer carga emotiva forte de cunho ressentido, e resguardam a entonação de sátira – sinistra, é verdade – quer quando em série, como em “As Mãos", quer quando uma delas é empalada, como em “Varamão”. “Altar” talvez resuma melhor a irreverência do artista: a mão amputada pode ser vista como o ator que vive o espetáculo, um cenário negro. Mas a sua volta reluz uma aura amarelo-dourada, e a cortina do palco reveste-se de alva e festiva transparência.

Com um mínimo de material iconográfico, e poucas, mas reluzentes cores, ele banaliza o papel da arte na sociedade ao apontar, com ironia insólita e sibilina, campos de tensão e isolamento inexorável, em que o ser humano sobrevive em condições adversas limítrofes.

Metáforas do meio ambiente, essas imagens não se exaurem em si mesmas ou em conotações sócio-culturais, mas referem-se também, num viés histriônico, à história da arte.Reclamam para si uma visão crítica, mas bem humorada e até farsesca das correntes construtivistas e da Pop arte, redimensionadas pelo olho da pobreza humilhada. Em “Mãodrian”. Nassar sucateia a geometria construtiva ao falsetear as linhas retas, ao intoxicar os planos chapados com pinceladas mal-ajambradas, terminando por remendar de modo mambembe os destroços de planos com um gancho pintado, mais próximo este do cachimbo de Magritte. E suas imagens, de modo geral, pelo aspecto tosco e mesmo grosseiro, estão sempre a zombar do perfeccionismo mimético da Pop arte. Trazem à tona as ambigüidades das transposições culturais e as inferências muito reais que as apropriações podem produzir sem perder seus valores e sua criatividade.

Nassar busca um tempo redivivo, incrustado na herança do imaginário popular. A rosa dos ventos, ponteada pela indicação dos pontos cardeais assinalados por suas inicias, reforça as coordenadas espaciais. E e N podem significar também este e norte, mas seus lugares na obra extrapolam os mapas convencionais. Assim é, por exemplo, quando no caso de “Mãodriam” as letras encimam um precário semicírculo austral, confirmando a versão construtivista sul-equatoriana. As datas também carregam sentido dúbio, ao serem apartados os números. Lembrança e memória que vão constituir um novo presente, quando a cada forma é atribuído novo lugar e nova data. Bérgson nos ensina que “a memória não é apenas a conservação de lembranças, mas a seleção delas, que salvaguarda aquelas necessárias ao momento presente”.

É uma pintura que resgata com bonomia irônica, e às vezes perversa, o ideário cotidiano da Amazônia, em particular e, de certo modo, do Brasil como um todo. Através de seus registros de imagens pontilhadas, reconhecemos num paralelismo expressivo, as cambiantes sociais e culturais. Não é apenas a manifestação avulsa de um vocabulário individualizado apreendido em suas origens, mas o teatro de um sistema cultural e social que vem à tona nas imagens que se manifestam como revelação e sondagem da experiência brasileira.